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PARECER DO FREI CLEMENTE DE SÃO JOSÉ, COMISSÁRIO PROVINCIAL DE SANTO ANTÔNIO E MEMBRO DA JUNTA DAS MISSÕES

De Atlas Digital da América Lusa

PARECER DO FREI CLEMENTE DE SÃO JOSÉ, COMISSÁRIO PROVINCIAL DE SANTO ANTÔNIO E MEMBRO DA JUNTA DAS MISSÕES

Geometria

Autos da Devassa contra os Índios Mura


Senhor, vi este auto sumário de testemunhas para dar o meu parecer em carta fechada, segundo a lei, e decreto de Vossa Real Majestade . A respeito da guerra, que neste Estado do Grão-Pará se pretender dar a nação Mura, que habita o rio da Madeira, e as nações bárbaras, que residem no rio dos Tocantins, e impedem a passagem para este Estado aos vassalos de Vossa Majestade, que assistem nas Minas de São Félix , como também infestam, e acometem, os que vão a pesca das tartarugas, fazendo mortes e flechando a outros, que vão a Madeira a factura de cacau; o que visto, e ponderado com toda a reflexão, digo, que a primeira testemunha deste sumário é parte interessada, pois diz, que os índios da nação Mura lhe mataram três negros, e ninguém pode ser testemunha em causa própria. Diz mais, que sabe como o ano passado a mesma nação matara um branco cabo de canoa dos Tapajós; mas não da razão do seu dito, pois não diz, como o sabe; e a razão, porque o sabe, nem alega pessoas que o soubessem. Afirma também assertivamente, que o cabo da canoa não lhes deu causa; e como sabe, que se lhes não deu causa?, e se o sabe, diga a razão porque o sabe. A segunda testemunha diz, que é fama constante que os Mura fazem instabilidades gravíssimas no rio da Madeira. Para ser fama constante todos, ou a maior parte dos moradores o deviam saber, e se haviam de queixar; e não consta que por esse respeito deixem de ir ao tal sítio muitas, e muitas canoas à colheita do cacau, como a experiência nos mostra. Demais, que não diz, quem viu matar ao cabo da canoa dos Tapajós os Tapuias Muras, e se é fama constante entre trinta e uma testemunhas, que se tiraram nesta devassa, porque não depõem sequer uma de vista. Antes só dizem umas, que ouviram dizer, e outras, que o sabem, mas nenhuma da razão do seu dito e o mesmo é a respeito do gentio, que habita à beira do rio dos Tocantins, pois todas as testemunhas, que juram nesta matéria, todas falam pelo mesmo teor, dizendo, que o dito gentio tem feito muitas mortes, aos que vão as tartarugas, aos que descem de cima, e aos que desceram das minas de São Félix. Só a última testemunhas alega com o Padre Frei Antonio Religioso Leigo de São Bento. A trigésima testemunha depõem, que fora acometido pelo gentio dito rio dos Tocantins, e também faz menção do dito Padre , mas nada disso faz prova legal, pois para provar, o que a ele lhe fizeram , devia alegar testemunhas de vista , e como dito Padre não aparece, não pode testemunha no acerto, e caso que aparecesse era parte suspeitosa, como também a sobredita testemunha, pois deviam de alegar com quem soubesse do fato. A quarta testemunha também alega que os Muras lhe mataram um negro e lhe flecharam três, sem estes lhe darem causa alguma, e por onde sabe, que os seus negros não deram causa alguma aos Muras? Se o sabe pelo dito do cabo da sua canoa e se tem outra ciência, que faça legalidade, porque a não expande no seu depoimento? A quinta testemunha depõem que todos os anos há muitas mortes, assim de brancos, como de negros no rio da Madeira feitas pela nação Mura, e que o sabe, fatal juramento! Sabe e não diz, o como o sabe ? São as mortes continuas todos os anos, e são tantos os brancos que vão ao cacau e não há uma testemunha neste sumário, que diga, que viu matar? E só algumas, que falam como partes interessadas, é que dizem, que lhes mataram os das suas canoas ou os seus negros, mas nenhum sequer achou uma testemunha que referisse para a prova legal do seu depoimento ? A sétima testemunha depõem só pelo dito dos Reverendíssimos Padres da Companhia, e isto não basta para que faça prova legal, que como os Reverendíssimos Padres impetram a tropa de guerra, ainda que o seu dito é de grande autoridade em toda a matéria, no presente caso, não faz prova. Faz me grande dúvida o ser chamado para esta devassa, a décima testemunha , e maior dúvida me fica; que sendo o dito Mestre Ourives, e assiste nesta dita cidade diga que sabe, que o gentio Mura tem feito grandes mortes na Madeira, sem que haja causa, para que os ditos Muras as façam. Grande ciência em um Mestre Ourives, que assiste na cidade. O certo é que quis dizer , que o ouvira dizer a alguns brancos. A décima quarta testemunha diz, que sabe de certa ciência , que o bárbaro Mura tem feito excessivas mortes, tanto a brancos, como a negros, e que ele testemunha ajudara a enterrar a alguns: Quem em direito quer provar legalmente a certa ciência deve referir testemunhas, que contestem com seu dito. Se são excessivas as mortes, ainda há quem se atreva a ir ao cacau no tal rio? O certo é, que as mortes excessivas caem de baixo de hipérbole, que basta a morte de alguns, para que na hipérbole se digam excessiva, e se é lícito o juramento assertório com ditos hiperbólicos consultem-se os autores. Diz que ajudou a enterrar alguns, mas não nomeia companheiros, que o ajudassem. Poderá ser, que tenha a mesma caridade de Tobias, que ocultamente sepultava os mortos em sua casa. Notados assim os ditos das testemunhas, entro a expender os fundamentos do meu parecer. Primeiramente devesse averiguar com toda a legalidade, se os Principais da nação Mura, e da nação, que habita o rio dos Tocantins mandaram fazer as ditas hostilidades, para que se lhes peça satisfação decorosa às armas e Coroa de Vossa Real Majestade porque no caso, que os Principais não concorram para as ditas mortes, e estes não dando a satisfação devida, então fica o direito claro para se lhes dar guerra; por que não estando os Principais culpados, e querendo estes dar condigna satisfação, não é justa que as tais nações venham a pagar os insultos, que alguns de seus vassalos temerariamente fizeram. Quia alius exfacto alterius non debet progravari. L. Pater Gram. 44. ff. De horid. inst. L. Siquis insuo. §. Losis. Cap. de Inoffic. Test., por que a pena deve cair sobre os autores do crime. Quia pona tantu sequi debet suos autores. L. Sancimus. Cap. de Ponis. Cap. 29 de Const. in 6: Cap. Romana in finde Sent. Excomicat. 16. ff. de Ponis. Demais que para a invasão de justa guerra devesse primeiro purificar a intenção Verbi gratia. Se é com zelo da honra de Deus, se faz para se defender a Coroa, ou para que se de à mesma Coroa satisfação, que por ambos os direitos lhe é devida, ou outras justas causas, que apontam os autores; porque quando se da guerra, ou por ambição de estender domínio, ou por ódio, e malevolência, não é lícita, antes injusta. Baldo Cons. 432. num. 1o. §. 4o. Quod requiritur ex L. 5a. Tusc. Let. B. Concl. 34. num. 3. E do sumário das testemunhas e seus ditos, não se colhe evidentemente a intenção purificada, pois quase todas depõem pelos mesmos termos, que quando não invalidem, não provam legalidade segura em direito; além de que pode-se presumir sem temeridade, que os cabos de canoa e índios, que nelas vã, tenham dado causa a algumas mortes feitas pelos bárbaros das ditas nações; pois a muitos se não ocultam as insolências, que alguns brancos fazem pelo sertão, e a seu exemplo os negros, que levam por remeiros: e tais ditos não merecem tanta atenção, para que por eles, se lhes possa dar guerra justa , e muito menos fazem prova, os que juram pelo que os ditos cabos e negros ouviram; pois é certo como diz Valência 2a. 2o. Disp. 3a. quest. 16. pag. 2a. vers. 3. a quem segue o erudito Palão que Ad bellum juste feredum non sufficit qualiscunque injuria, sed quo vel absolute, vel ob aliquas circunstantias sit mayor, vel certe non minor, quam damna, quo solit bellum affere. Confesso, que neste sumário não acho fundamento algum, a respeito dos ditos das testemunhas , donde possa formar juízo ser lícita a guerra, que se pretende; porque a primeira e quarta testemunhas são partes interessadas, porque afirmam, que lhe mataram os Muras os seus negros, sem alegar sequer com uma testemunha de vista, e quando as partes são interessadas devem ser repelidos os seus depoimentos, como tem Torrec. Na Enciclopédia tom. 2o. Verb. Testigos de Sentir de Baldo in L. Dictanbius num. 40-Cod. test. Bertan. Cons. 251. num. 4 . Masch. de Probat. Lib. 3. Concl. 2357. num. 1. e 2. Com outros, que refere Farinac, quest. 60. num. 10. Aonde conclui, que está resolução é comum, sem haver, quem a contradiga. De onde estas mesmas testemunhas interessadas são as que depõem do fato: Portanto não podem testificar; porque ninguém no mesmo ato pode ser testemunha, e depor do fato, em que é parte interessada L. Nullus, e aí a comum dos Doutores ff. de Test. Cap. Insuper in ultimis Verbis de test; e as tais testemunhas nas causas criminais não fazem indício algum, como ensina Farinac. Sup. Cit. Num. 5. e 6., e com ele os mais , que cita, e segue Phelippe de Bittis Num. 27. Além de que as testemunhas não provam, o que dizem, e assim nada concluem os seus ditos, porque Probare oportet, et non sufficit dicere: Glos. Verb. Dicatur in L. 2a. in Princip. ff. Si quadruplex pauperium fecisse dicatur. Cap. Dilecti de Except. Jason in L. Siprius Num. 97. De novi operis nune. Felin., Paris, Menoch. Relati a Barbos. de axiom. juris Let. P. Donde se corrige, que sendo a matéria de ponderação, e as testemunhas não darem a razão dos seus ditos, nada provam, e menos concluem; porque dito símplices, que não exprimem a razão e causa de sua ciência, ipso jure, são nulos ex L. Solam. Vers. Nullius Momenti Cap. de Test. § ut igitur ff. de transt. Cap. Extenc. de test. quost. 553. Vers. propterea dicit. Demais . que as testemunhas não provam legalmente, que as mortes feitas pelas nações são excessivas, só uma afirma, mas não o prova; logo como por razão dos tais ditos se pode dar justa guerra, que trás consigo enumeráveis mortes. O certo é, que Promesura peccati debet esxet, plagarum Modus: Deut. 25., e assim dessa comum o ensina Vitor. dejure bello Num 14 . Conech. Desp. 31. dubio. 2. num 53 Molintract. 2. desp. 102. vers. Illud est . Soares disp. 103. Sect. 4. Num. 2. Valência 2a. 2o. desp. 3a. quost. 16. part. 7a. Vers., a quem segue , e cita Palão Sup. Relat. Logo se a pena deve corresponder a culpa não se provando legitimamente , que a culpa é exorbitante o Mura, não se lhe pode justamente dar a pena de guerra: e sendo a razão a alma dos ditos das testemunhas, como bem prova Masch. Concl. 1371. Num. 51. Era necessário, que as testemunhas depusessem as ocasiões em que viram essas mortes. Glos. in Auth. et Si Contract. Cap. de fide instroment . ubi Barth. num. 24. in L. Comparatum Sermonem. Demais, que todas as testemunhas depõem per eundem meditatum sermonem, portando não devem ser admitidas L. 3. §. 2. et ibi barth. ff. de Test. Alex. Const. 47. num. 5. Nata Cons. 99. num. 8 et alii. De onde a maior parte das testemunhas assistem nesta cidade. Nem vão todos os anos ao sertão: logo mal podem saber com ciência certa dos tais insultos, e se dizem, que ouviram dizer, não referem, a quem ouviram, o que depõem: logo depondo de causa, de que não tem ciência certa, não se lhes deve dar crédito. Excitatis per Barbos. EX Remissiom. ad Ordinand. Lib. 3. tit. 55. in Set. Concl. num. 85. Outro Barbosa in Cap. de Test. 29. num. 2. Além do que nas causas gravíssimas, como são estas de guerra devem ser as testemunhas Omni exceptione mayores: venero a todas as testemunhas do sumário, mas como depõem vagamente com pouco fundamento, e sem darem as razões dos seus ditos, e ainda que sejam testemunhas, se tornam tão suspeitosas, que nenhuma se fazem em direito Regul. Inspicimus. L. 6. Gabriel Lit. de Test. Concl. 4. Roland. Cons. 1a. num. 17. vol. 2. Tiraq. inprofact. L. Si unquam Num. 42. Farinac. quost. 65. num. 128. et se quenteb. Com Themud., que os cita, por cuja razão se deve estar pela parte dos Tapuias, que se culpam, e muito mais a vista de tão ambíguos fundamentos, ainda que haja dúvida da insolência , que se lhes imputa, e si presuma contra eles o fato: Quia in ambiguis reo potius favedum est, quam Autori. L. Favorabelioris ff. de Regul. juris. §. Retinendo inst. de enterdict. Cap. Cum sunt partium de Regul. juris lib. 6. Em cujos termos sou de parecer, que se mande examinar com mais individuação, e legalidade este fato, e que se mande propor a parte contrária; isto é aos Principais das nações. Contra que m se tirou este processo, para que sendo certas as hostilidades, que se dizer ter cometido os seus vassalos , se lhes peça condigna satisfação as armas, e Coroa de Vossa Majestade . Ex. Palão. tract. de Caritat. disp. 5a. punct. 30. ibi. Ante bellum tenetior Princeps examinare justam belli causam, illamque adversario parti proponere, ut eidem justitia belli constet, si compensationem debstam nollit facore: Quia nemo potest bellum indicere, nisi necessetate coactus. Sic ex Ag. Molin. 23. Soar. disp. 13. de bello Sect. 7a. num. 3o. Donde venho a concluir, que se as provas das testemunhas devem concluir de necessidade. L. Non Hoc Cap. De legitimus , ubi Jason. E nos delitos para se impor a pena, é necessária uma prova mais clara, que a luz do meio dia L. fin. Cap. de Probat. Maschard. Concl. 832. num. 28. e a tal prova deve ser certa , e não dúbia, L. Lucio. §. Pater ff. de Legatis. 2. o que não se acha nestes autos, como fica mostrado, por cuja razão sou de parecer, que Vossa Majestade mande, que este fato se examine com toda circunspecção, e madureza, por pessoas desinteressadas, e tementes a Deus. Este é o meu parecer segundo entendo em minha consciência, Vossa Majestade mandará o que for servido. Convento de Santo Antônio dos Capuchos de Belém do Pará. 26 de setembro de 1738.



Ficha técnica da Fonte
Data: 1738.
Referência: INFORMAR REFERÊNCIA.
Acervo: INFORMAR ACERVO.
Transcrição: Manoel Rendeiro.
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