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TEENSMA, Benjamin. OS MOCÓS DA ITABIRABA DO CÓRREGO RETORTO

De Atlas Digital da América Lusa

TEENSMA, Benjamin. OS MOCÓS DA ITABIRABA DO CÓRREGO RETORTO

Geometria

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Os mocós da Itabiraba do Córrego Retorto

Benjamin Teensma (De Universiteit Leiden)


RIO GRANDE é o nome da capitania brasileira aonde os europeus só chegaram no decorrer do século dezesseis. Antes daquela época lá viviam os povos autóctones dos potiguares pela costa, e dos povos nômades tapuias no interior. A partir de 1500 diversas nações europeias começaram a tomar conhecimento desse saliente nordestino do continente sul-americano: portugueses, espanhóis, franceses e holandeses navegaram ao longo da sua costa, entrando de vez em quando em relações comerciais com os povos litorâneos. O lugar indicado no norte para tais contatos econômicos era a larga barra onde o Rio Grande — ou seja o Rio Potengi — desemboca no mar. Lá ancoraram, por exemplo, franceses a abastecer-se, em feitorias primitivas, das madeiras preciosas do pais.

Mas a presença deles não foi passivamente tolerada pelos portugueses que, respaldados pelas cláusulas papalmente garantidas do Tratado de Tordesilhas de 1494, consideraram toda a zona oriental sul-americana entre as barras do Amazonas e do Rio da Prata como pertencente à soberania por¬tuguesa. Assim eles expulsaram em dezembro de 1597 os franceses da barra do Rio Potengi, iniciando, já em janeiro de 1598, a construção do Forte dos Reis Magos. Por consequência dessa indesejada fortaleza portuguesa no seu território, parte da população indígena potiguar retirou-se por terra a Mucuripe na costa do Ceará, e outra parte à Baía da Traição na costa da Paraíba. Nesses novos territórios entrariam, nos decênios a seguir, em contato com os holandeses que, como os franceses, não respeitavam servilmente as cláusulas dum obsoleto tratado bilateral concoctado em Tordesilhas em 1494, entre os monarcas de Portugal e da Castela.

No diário do amsterdamês João Baptista Sijens, que visitou Mucuripe em novembro de 1600, encontra-se o seguinte trecho sobre sua entrevista com o cacique potiguar Jacaúna:

Quando Potengi foi ocupado pelos portugueses em 1597, Jacaúna dirigiu-se com sua gente aos Canibais, gastando seis semanas na viagem e passando cinco rios: o quarto Zuponim (= R. Upanema), o quinto Rio dos Canibais e Jaguaribe chamado pelos selvagens; ao qual seguem mais alguns riachos pequenos, e depois Mucuripe.[1]

E a parte que em 1597 se retirara à Baia da Traição, recebeu a visita de holandeses em 1625, quando a armada do almirante Boudewijn Hendricksz lá foi ancorar em agosto desse ano, depois da sua malograda tentativa de romper o cerco que o exército luso-brasileiro montara ao redor dos holandeses na cidade do Salvador. Esta armada de socorro trouxe da Paraíba uma dúzia de índios à Holanda — entre eles o conhecido Antônio Paraupaba — que durante quatro anos foram treinados na língua e nos costumes holandeses, e que, depois da invasão holandesa de Pernambuco no inicio de 1630, serviram à WIC durante largos anos como intérpretes e chefes de aldeias indígenas. Sobre esses potiguares riograndenses da Paraíba encontra-se o seguinte trecho no roteiro holandês de 1637 de João de Laet, Descrição da costa do Brasil:

A meia légua de Mamanguape está a Baía da Traição, onde o general Balduíno Hendricksz passou algum tempo, e onde muitos brasilianos — potiguares — o visitaram. Deles, oito foram mandados à Câmara de Amsterdã e cinco à Câmara de Groninga, onde apreenderam a ler e escrever por ordem da Câmara de Amsterdã. (...)

Uma légua da Baia de Traição há um pequeno rio para chalupas, chamado Camaratuba. Três léguas rio acima há um engenho de açúcar, que queimaram quando lá esteve o general Balduíno Hendricksz, e que aparentemente foi reedificado.

Aqui não mora outra gente senão a do engenho. Quatro léguas além de Camaratuba encontra-se uma grande aldeia chamada Tabussuram, onde moram tiguares sob o comando do seu cacique Jaguarari. Pelo que tinha favorecido a Balduino Hendricksz, ele fugiu aos tapuias, mas voltaria se tivesse ocasião. [2]

Depois de uma estabilização bastante morosa na zona açucareira de Pernambuco, os holandeses pouco a pouco expandiram o território da sua colônia. Um após outro, eles conquistaram a Ilha de Itamaracá (1633), o Forte dos Reis Magos (1633), o Cabo de Santo Agostinho (1634), os Fortes do Cabedelo e da Paraíba (1634/35), e o Arraial do Bom Jesus (1636). E quando João Maurício de Nassau chegou a Pernambuco em janeiro de 1637, foi conquistado seguidamente o Forte do Porto Calvo, e construído o Forte Maurício sobre o Rio São Francisco. Mas uma nova tentativa de ocupar Salvador da Bahia em 1638 malogrou. Nos anos seguintes ainda foram conquistadas as capitais do Sergipe, do Ceará, do Maranhão, como também os Fortes de São Jorge da Mina e de São Paulo de Luanda na costa ocidental da África. Mas essas ações militares tinham esgotado tanto as forças militares e econômicas da WIC, que logo depois da conclusão do mandato de João Maurício em 1644, a estabilidade da colônia se desmoronou, os moradores portugueses se rebelaram, e finalmente a cidade do Recife ficou cercada por forças inimigas a partir de agosto de 1645. Além das várzeas pernambucanas, os holandeses também perderam as da Paraíba, e assim terminaram sem possibilidades de produzir açúcar para a exportação, ou de criar víveres para os milhares de habitantes da capital. Só na Ilha de Itamaracá e nas capitanias do Rio Grande e do Ceará restaram-lhes algumas, mas insuficientes zonas de agricultura e de pecuária. Para seu sustento dependeriam doravante das importações vindas da Europa.

Mas, na ausência da agricultura, uma colônia sempre dispõe de outros meios para ganhar lucros, tais como a pirataria ou a exploração mineira nos territórios ainda acessíveis. E os holandeses serviram-se de ambos. No âmbito deste artigo deixo de levar em conta a pirataria, limitando-me somente à exploração mineira, concretamente à tentativa deles de descobrir minas de prata no interior do Rio Grande. Embora seja um tema já amplamente estudado por autores como Alfredo de Carvalho e Olavo de Medeiros Filho, acho que pela pesquisa detalhada dos documentos arquivísticos guardados ainda seja possível acrescentar-lhe novos aspectos históricos e topográficos. [3]

Sabemos hoje que no Brasil não há minério de prata, mas no século dezessete circularam boatos fantásticos sobre supostas minas no interior de capitanias tão diversas como Sergipe, Paraíba, Rio Grande e Ceará. Já foram publicados vários artigos sobre atividades mineiras de pessoas como Jodocus van Stetten na Paraíba, e Mathias Beck no Ceará. Mas no Rio Grande os holandeses nunca chegaram a inaugurar núcleos efetivos ao redor de minas concretas, embora não deixassem de mandar expedições ao sertão no intuito de localizá-las e de apanhar amostras de mineral para ser analisadas no Recife. Nessas expedições entraram no território dos tapuias onde, de vez em quando também acharam aldeias de índios tupis que lá viviam desde há muito tempo para proteger-se das ações vingativas dos portugueses. As zonas montanhosas do interior donde desciam os rios Ceará Mirim, Potengi e Trairí não eram totalmente desconhecidas aos holandeses, porque a WIC servia-se de funcionários aventureiros que atuavam como mensageiros e embaixadores das autoridades no Forte Keulen aos aliados indígenas na Serra de Santana. Nessa altura ela ainda se chamava a Serra de Macaguá. Trata-se de pessoas como Jacob Rabe, Rodolfo Baro, Pieter Persijn e Peter Hansen, que pessoalmente conheciam o cacique Nhandui do povo tarairiú, que falavam tanto o tupi como o idioma dos tapuias, e que sabiam atravessar e sobreviver na caatinga.

Da autoria de Jacob Rabe existe uma "Descrição dos costumes e hábitos dos tapuias", mas traduzida para o latim por Gaspar Barléu, e publicada no livro dele sobre o governo brasileiro de João Maurício de Nassau: Historia Rerum per Octennium in Brasilia Gestarum Historia, de 1647. Esta descrição está eivada de corruptelas em quase todos os termos indígenas. Do livro existem traduções em holandês (1923), português (1944) e inglês (2011), e todas cegamente copiaram os inúmeros erros da edição latina. — Da autoria de Rodolfo Baro existe uma "Relação da viagem ao país dos Tapuias", cujo original holandês se tem perdido, e que unicamente sobreviveu numa tradução francesa de 1651, e brasileira de 1979. Também estas traduções estão eivadas de corruptelas, e assim frequentemente quase incompreensíveis. — Do alemão Peter Hansen subsiste um diário manuscrito sobre suas experiências no exército da WIC no Brasil entre os anos 1643 a 1654, dos quais sete passados no Rio Grande. Este diário foi publicado em alemão em 1995, e uma tradução brasileira está sendo preparada. O autor viajou extensamente pelo sertão riograndense, inclusive à Serra de Macaguá. Fez parte da expedição de 1650 às minas do Rio Potengi, que é o tema do presente artigo. [4]


Pela leitura combinada dos textos de Rabe, Baro e Hansen sabemos que nos anos quarenta do século dezessete a zona central das terras do povo tapuia dos tarairiú se encontrava ao redor da atual Serra de Santana, que nessa altura ainda se chamava a Serra de Macaguá. Para chegar a essa comarca, os emissários dos holandeses no Forte Keulen em Natal soíam subir, nos meses do verão tropical, ao longo do curso do rio Potengi até aproximadamente o lugar da atual cidade de Cerro Corá; e nos meses do inverno tropical pelo "Caminho de Garstman" ao longo do curso do rio Trairí até cercanias do lugar da atual cidade de Currais Novos. No cume daquela serra os tarairiú tinham suas plantações de mandioca, milho e tabaco. Da mencionada serra os leitos de vários riachos descem para o sul na direção da atual cidade de Acari, onde nos meses de inverno se formava um pântano com abundância de peixes traíra. Ao sul de Currais Novos os mencionados riachos juntam-se num riacho maior que hoje se chama Acauã = Macaguá. Nela entra, vindo do leste e nascido no município paraibano de Pedras Lavradas, o riacho Picuí. Juntos eles formam, na altura de Acari, a represa do açude da Gargalheira. Além da barragem da Gargalheira o riacho segue com o nome de Acauã à cidade de Caicó, para desembocar-se mais longe no Rio Piranhas, que se dirige para o norte.


Os relatórios riograndenses dos "Comendadores dos Tapuias" Rabe e Baro, cheios de nomes exóticos indígenas de rios, serras, pessoas e animais, foram confiados — em manuscritos sem caligrafia e com gramática reduzida — a pacatos filólogos ignorantes das realidades rústicas do Brasil. O amsterdamês Gaspar Barléu devia resumir o texto alemão de Rabe em latim humanístico, e o burocrata Pierre Moreau traduziu o texto holandês de Baro em francês. Assim nasceram as corruptelas, entre as quais as derivações do nome Macaguá têm a primazia, porque resultaram em: M'ontagina, Tu'rracoa, Q'uoaguho e W'arhauaa. E para ficar com outro nome de rio na mesma região, o Picuí — então escrito como Pycuy — ele degenerou em Igtug; e seu cognome em tupi: Itacoatiara = Pedras Lavradas, em Itaquerra. Para continuar mais um pouco neste terreno das corrupções textuais, menciono ainda que o Senhor Barléu tirou do original de Rabe sobre os tapuias: "Vitrum moscoviticum quod talcum vocant" em vez de "Vitrum muraniticum, crystallum vocant". Trata-se aqui das famosas contas de cristal fabricadas na ilha de Murano, perto de Veneza, e nada têm que ver com a cidade de Moscou, na Rússia. Ele também confere a esse povo nomádico carros para transportar seus utensílios, em vez de [ha]macas = redes. No texto original de Baro sobre os tapuias, o Senhor Moreau menciona em certo lugar "a aldeia Terapíssima do chefe João Vvioauin", em que corrupteliatricamente é possível reconhecer "a aldeia Tabussuram do cacique Jaguarari" do já acima citado roteiro brasileiro de João de Laet de 1637. Mais algumas corruptelas na tradução francesa do texto de Baro são: Incarenigi = Jacaré-Mirim; Vitapitanga = vice-capitán; Vvarrivvuare = Martim Soares [Moreno]. Finalmente nela há questão de "sementes de corpamba", em que reconhecemos como confusões: nl. saeden (= prtg. sementes), em vez de nl. bladen (= prtg. folhas), com corpamba em vez de erva santa = tabaco. Trata-se, portanto, de autênticos charutos sertanejos, devidamente feitos de folhas de tabaco.

A expedição dos Senhores Strucht, Houck e Hansen de janeiro/fevereiro de 1650 foi empreendida por ordem dos "Nobres e Poderosos Senhores", ou seja dos chefes supremos do Governo Colonial no Recife. Ela devia subir ao longo do rio Potengi a uma suposta mina de prata perto da barra do afluente Camaragibe, nas cercanias do atual povoado de Igreja Nova. Além desse lugar deviam procurar uma segunda mina, subindo ao longo do Potengi à barra de um mal identificado afluente vindo do noroeste, e que em holandês se chamava Kromme Revierken, ou seja, Riacho Curvado. Tal nome não ajuda a identificar o afluente em questão, porque todos os afluentes do Potengi são tortuosos. Os melhores candidatos para o afluente aludido chamam-se hoje Boqueirão, Pedra Preta e Poço dos Cavalos. Segundo Peter Hansen, essa segunda mina devia encontrar-se a cerca de 30 léguas = 170 quilômetros do Forte Keulen. Mas tal distância resulta absurda, porque o percurso total do Potengi conta com perto de 180 quilômetros. [5]

Além da barra do Camaragibe a expedição entraria na difusa zona fronteiriça dos territórios tapuias. Verdade é que o centro deles ficava bastante mais para o oeste, mas nem assim já havia uma Serra da Tapuia, ao sul do Potengi, nas cercanias do curso superior do Riacho Santa Rosa. Se bem que os relatórios dos holandeses e de Peter Hansen inequivocamente declarem que na tarde do 29 de janeiro a expedição deles começou a marchar ao longo dum riacho ao oés-noroeste, o historiador riograndense Olavo de Medeiros Filho não duvidou em mandar a excursão deles ao longo do Riacho Santa Rosa ao sul-sudoeste. Essa errada interpretação invalida irremediavelmente todo o resto das conclusões por ele feitas no — de resto valioso — artigo As minas de Camarajibe e Iporé, inclusive a locação no terreno do sítio da aldeia e das roças dos indígenas do cacique Joan Assoud, cujo nome ele também indevidamente transformou em João Açu. [6]

Quem se ocupa de viagens terrestres feitas por holandeses noutros continentes e noutros séculos, lida com algumas dificuldades. Os viajantes em questão mediram as distâncias percorridas em passos duplos, equivalendo cada 3 mil passos a uma légua de 5.649 metros. Quem ao andar deve contar milhares de passos duplos, se equivocará fatalmente, e as léguas assim contadas perdem sua fiabilidade de medida linear. Uma expedição feita em 1650 ao longo do rio Potengi realizou-se por trechos ziguezagueantes, em terrenos acidentados e sem caminhos calçados. Circunstâncias todas elas para conturbar a medição exata das distâncias percorridas. No entanto, para obter uma ideia pelo menos aproximada das distâncias nesta expedição percorridas segundo a quilometragem da atualidade, fiz uma listinha das distâncias em quilômetros entre Natal e várias cidades situadas no vale do Potengi. De Natal a Ielmo Marinho são 45 km; a São Paulo do Potengi são 70; a Barcelona são 90; e a São Tomé são 107. Resta a vencer a dificuldade de identificar por seu nome atual o afluente Kromme Revierken = Riacho Curvado. Remato esta computação com a provisória conclusão de que a distância entre Natal e São Tomé é de 107 km, e que a distância de São Tomé à poça Iporé pelo leito do Riacho Curvado é de mais uns 30 km. Chego assim ao total de 140 km para a viagem de ida, ou seja a 280 km para as duas viagens de ida e de volta, percorridas nos dez dias entre 25 de janeiro e 3 de fevereiro. O que equivale a perto de 28 km percorridos por dia, média alcançável por infantes bem treinados, mesmo quando marchando por terrenos difíceis.

Em ordem esquematizada a viagem no caminho de ida do Forte Keulen ao ponto mais afastado da poça Iporé na cabeceira do Riacho Curvado decorreu-se como segue. Acompanhados por um grupo de treze soldados brancos, quatro brasilianos e três escravos, os Senhores Strucht e Houck atravessaram, na madrugada do 25 de janeiro de 1650, num bote, a foz do Rio Grande, marcharam por terra à lagoa de Jacaré-Mirim, e pernoitaram lá. Observe-se, entre parênteses, que Peter Hansen menciona dez brasilianos e doze escravos. — Ao outro dia prosseguiram a marcha a oeste, passando a barra do rio Camaragibe, ao longo de imponentes constelações rochosas: "o castelo mais belo que se podia admirar com os olhos" nas palavras de Peter Hansen. Pernoitaram no lugar da "primeira mina de prata", já nove léguas afastado de Natal. Desde Camaragibe o Potengi sobe ao interior a oés-sudoeste. Nos meses do verão tropical seu leito está seco, de maneira que é possível marchar tanto por como ao longo dele. É o que a expedição dos Senhores Strucht e Houck fez nos dias seguintes. — No dia 27 pausaram ao meio-dia num lugar chamado Cuité: "porque nele crescem cabaças pequenas". Pernoitaram dentro do rio a leste duma montanha alta e obtusa que se chamava Itabita. Segundo Olavo de Medeiros Filho é o atual rochedo Pedra Branca, ao norte da cidade de São Pedro. — No dia 28 seguiram marchando por e ao longo do rio. Na pausa do meio-dia tomaram um banho numa poça ou represa, e pernoitaram ao sopé duma rocha Caicatinga, que se chamava assim "por uma árvore frutífera desse nome que cresce numa pedra grande". A água que encontraram nas poças fez-se cada dia pior e mais salgada.

No dia 29 seguiram andando três léguas por e ao longo do rio por entre montanhas cobertas de arvorinhas secas, interrompendo a marcha ao sopé da montanha Apitanga e na margem duma boa poça que Tingeciade se chamava. Em combinação ligeiramente restaurada estes dois nomes inexistentes produzem o nome tupi de Itapiranga, que significa Serra Vermelha em português. No meio-dia pausaram na barra dum afluente seco na margem direita do Potengi, a que deram o nome holandês de "Kromme Rivier", porque, segundo os índios, ele se chamava Capipe Retouba: corruptela manifesta de Córrego Retorto ou seja Riacho Curvado. Por razão do método aproximativo da contagem das léguas percorridas durante esta expedição não é possível determinar com seguridade de qual afluente concreto se trata, mas não é impossível a hipótese que seja o Riacho Boqueirão da atualidade. De todos modos os relatos dos Senhores Strucht e Houck, e o diário de Peter Hansen dizem inequivocamente que o curso dele subia para o oés-noroeste. Depois da pausa do meio-dia marcharam por este Córrego Retorto por umas duas léguas, passando pelo açude Mereminnewater = Lagoa da Sereia, formado por uma espécie de "stuwdamme" = barragem. Depois de marchar mais algumas léguas pernoitaram num lugar a que deram o nome de Rottepiswater = Água do Mijo dos Mocós, porque o líquido que encontraram nos buracos das pedras estava empestado do mijo e das caganitas desses animais.[7]

Aqui estiveram perto da mina de prata que buscavam, porque na opinião do "comendador dos tapuias" Pieter Persijn que acompanhava a expedição como guia e intérprete, ela devia estar riacho acima perto de algumas roças e duma aldeia de índios tupi, e nas cercanias duma montanha reluzente com o nome Itabiraba. Segundo a edição brasileira de 1958 do Dicionário da Língua Portuguesa de Caldas Aulete, Itaberaba significa "pedra reluzente" em tupi, no verbete que o manual define como: "no tempo das bandeiras, designação dada pelos sertanistas às minas fabulosas que buscavam cobiçosamente". E semelhante montanha encontrava-se efetivamente na cabeceira do Córrego Retorto, e perto dela achariam com efeito roças e uma aldeia dum cacique tupi. E habitantes dessa aldeia afirmariam na verdade que Pieter Persijn lá tinha estado numa visita anterior.

No dia 30 de janeiro seguiram sua marcha, chegando depois de meia légua ao sopé da montanha Itaberaba, onde Pieter Persijn apontou o local da "segunda mina de prata". Além dele, chegaram finalmente, depois de andar duas léguas mais, à aldeia do cacique Joan Assoud, situada num vale entre as montanhas Iberibetou, Outezakwas e Tabouquaba. O sítio, onde segundo Persijn se encontrava a jazida do minério da terceira mina de prata, estava um pouco adiante, na margem duma poça ou represa que se chamava Iporé. E ainda na tarde desse dia alguns membros da expedição dirigiram-se a ela a apanhar amostras da pedraria. E vale a pena lembrar-se aqui do já antes mencionado cacique potiguar Jaguarari, que por medo das represálias portuguesas se retirara, em 1625, com sua gente da aldeia de Tabussuram da Baia de Traição para o território dos tapuias no interior, porque o aspecto gráfico do nome da montanha Tabuquaba, com certa reserva, identifica-se quase totalmente com o de Tabussura(m), e o aspecto gráfico de JoanAssoud com o de JaguArrary. E também Rodolfo Baro encontrara no interior do Rio Grande, durante sua embaixada a Nhandui em maio de 1647, uma aldeia tupi: Terapissima, com um cacique de nome Jean Vvioauin, cujos aspectos gráficos igualmente se aproximam bastante aos de Tabussuram e JaguArrary. E no aspecto gráfico dos nomes Iberibetou e Outezakwas será possível reconhecer — de novo com certa reserva — o da já referida e famigerada Serra de M'acaguhá. Finalmente o nome de Utataparaba para esse complexo mineiro na cabeceira do Córrego Retorto com que o alemão Peter Hansen remata o texto do seu relato da expedição de 1650, é interpretável como Yta-ta-paraba = Ita-ta-beraba = Itabiraba.

Entretanto, a partir da data do 30 de janeiro — primeiro de fevereiro segundo o calendário de Peter Hansen — os relatos dos acontecimentos dos Senhores Strucht e Houck por um lado, e do soldado Hansen por outro, começam a distanciar-se notavelmente. O relato do soldado foi confiado a um diário pessoal que não se destinava às autoridades da WIC, ao passo que os relatórios do Engenheiro e do Escotete sim, que se destinavam aos governadores supremos da Companhia no Recife. O soldado portanto podia contar detalhes inadmissíveis nos noticiários dos funcionários oficialmente cometidos pelo governo central da colônia. Na versão do soldado lemos que durante a viagem havia doentes de diarreia que deviam ficar atrás, que no caminho caçaram pombos e mocós, e que mataram uma anta. Também que, ainda no princípio do trajeto pelo leito do Córrego Retorto, uma parte da comitiva não continuou sua marcha. E que só o comandante Strucht, acompanhado pelo sargento, dois soldados e os dois Pedros, Hansen e Persijn, seguiram a viagem. Tanto o Engenheiro como o Escotete deixaram de mencionar tal fato importante. Strucht também ocultou o fato de que ele, na noite daquele dia 30 de janeiro, mandou os dois Pedros ao cume do monte Itabiraba, onde se extraviaram e durante vários dias perderam o contato com o grupo. A aldeia indígena do cacique Joan Assoud [= JaguArrary?] e a terceira mina de prata ao lado da poça Iporé foram visitadas portanto só pelo Engenheiro, pelo sargento e por um soldado, porque o outro militar ficara na aldeia para orientar-se sobre a anterior conduta de Pedro Persijn naquela região. E para disfarçar essas irregularidades no seu relatório, o Senhor Strucht manipulou ativamente a verdade e o curso dos acontecimentos no seu texto, intercalando, por exemplo, uma veemente desavença entre ele e Pedro Persijn durante a tarde do 29 de janeiro. Tal incidente falta nos relatos do Senhor Houck e do soldado Hansen. 

Como resultado dessa infeliz desavença existem, a partir da tarde do dia 30 de janeiro, duas versões dos acontecimentos da expedição, porque Hansen descreveu desde então a permanência dele e de Persijn no cume do monte Itabiraba e o regresso deles a Natal; ao passo que o Engenheiro prosseguiu à aldeia e às roças indígenas, e à mina de Iporé. Entretanto o Escotete ficou aguardando com alguma gente no leito do córrego, embora fingindo no seu relatório — instigado talvez pelo Senhor Strucht? — de que também tivesse ido à mina de Iporé. Nela tomaram as devidas amostras de mineral, para em seguida começar o regresso pelo mesmo caminho das roças, da aldeia, da "segunda mina" ao sopé do monte Itabiraba, do açude do Rottepiswater = Agua do Mijo dos Mocós, e mais três quarto de légua além. E sempre ainda no leito do córrego. Lá passaram a noite.

Na manhã do dia 31 de janeiro passaram pelo açude da Água da Sereia, onde também apanharam algumas amostras de mineral. Continuando sua marcha chegaram outra vez ao Potengi, por cujo leito seguiram a leste, passando pelo monte e da poça que conjuntamente se chamavam Apitanga + Tingeciado ou seja Itapiranga = Serra Vermelha. Depois da pausa do meio-dia seguiram marchando até perto do monte Itabita, onde pernoitaram. — E assim por diante, e sempre por terreno já conhecido, seguiram voltando sem novidades durante os dias 1, 2 e 3 de fevereiro, chegando ao Forte Keulen com saúde na madrugada do dia 3 de fevereiro. Mas nem todos chegaram lá com saúde, porque segundo o diário de Hansen muitos ficaram no caminho com "Rothen Lauff" ou seja a mortal disenteria bacilar com fezes sanguinolentas, causada pela água pestilenta que tinham bebido.

Embora o próprio Senhor Strucht não deixara de falsificar e de omitir verdades essenciais no seu relato, reservou bastante espaço nele para criticar e desmascarar as insinceras e mentirosas atitudes de Pedro Persijn que, segundo as informações obtidas de alguns habitantes da aldeia indígena, nunca tinha visitado a última mina do Iporé, nem reunira minerais dela, apesar de ter afirmado o contrário em Natal, antes da saída da expedição. De resto tanto o Engenheiro como o Escotete prestaram nos seus textos, como era de esperar, a devida atenção à disponibilidade de lenha, madeira de construção, água e terra agrícola nas cercanias das três minas em escopo, como também à exata locação e eventual acessibilidade delas.

Voltemos aqui alguns dias no tempo para seguir de perto as aventuras dos dois Pedros Hansen e Persijn a partir da tarde do dia 30 de janeiro, quando eles por ordem do comandante Strucht tinham que subir ao cume do monte Itabiraba. Precisaram de tanto tempo para fazê-lo que só lá chegaram depois de escurecer, de modo que foram forçados a passar a noite do 30 para 31 de janeiro na montanha. Por causa do frio e do zumbido dos ventos noturnos passaram muitas horas em terror. Quando na manhã do dia seguinte estavam de novo ao sopé da montanha, já o grupinho dos Senhores Strucht e Houck se tinha eclipsado na sua viagem de regresso. Contudo encontraram algo mais longe "gente nossa" no lugar da segunda mina. É evidente que neste caso se trata de companheiros da equipe que, por causa da sua disenteria, foram abandonados pelos comandantes. Hansen não relata a decisão que ele e Persijn adotaram a respeito desses pacientes, mas do diário dele colhe-se que a partir do dia 5 de fevereiro um grupinho de várias pessoas regressou durante toda uma semana pelo conhecido trajeto ao longo do Potengi ao Forte Keulen em Natal. Como havia doentes no grupo, por força a velocidade deles durante a marcha de regresso deve de ter sido reduzida, como também a motivação de prestar atenção à minuciosa contagem dos 96.578 passos duplos andados. Assim chegaram ao Forte na noite do dia 11 de fevereiro.[8]

Leiden, junho/julho de 2014.


  1. Este diário escrito em holandês encontra-se no roteiro manuscrito do cartógrafo-mor da WIC, Hessel Gerritsz, de 1629, na Biblioteca Nacional do Brasil no Rio de Janeiro. A versão original holandesa nunca foi publicada, e o texto é unicamente acessível em tradução francesa no volume 29 (1907) dos Anais da referida Biblioteca. Essa tradução ingenuamente respeitou todas as inúmeras corruptelas do original. Uma edição corrigida deste importante texto em tradução portuguesa é desejável, para que corruptelas crassas como Euwygeu oft Ocuieu = Heilyge Lodowick = Saint Louis / São Luiz possam ser definitivamente erradicadas.
  2. Laet, João de. Descrição das costas do Brasil, 1637* Manuscrito da John Carter Brown Library, Providence. Transcrito, traduzido e anotado por B. N. Teensma. Petrópolis, Kapa Editorial, 2009: 134.
  3. Carvalho, Alfredo de. Minas de ouro e prata no Brasil oriental. Explorações hollandezas no século XVII. In: Idem. Aventuras e aventureiros no Brasil. Rio de Janeiro 1929: 109-128. — Krommen, Rita. Mathias Beck und die Westindischen compagnie. Zur Herrschaft der Niederländer im kolonialen Ceará. Arbeitspapiere zur Lateinamerika Forschung der Universität Köln, 11-01, 2001. — Xavier, L. F. W. Mathias Beck and the quest for silver. Dutch adaptability to Brazil. (Tese de mestrado não publicada defendida em janeiro de 2007 na Erasmus Universiteit, Rotterdam, Países Baixos.) — Teensma, B. N. As frustrações do pastor Jodocus. Uma malograda empresa mineira dos holandeses no sertão paraibano. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, ano 99, no. 40. João Pessoa 2007: 115-141.
  4. Barléu, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Tradução e anotações de Cláudio Brandão. São Paulo 1974. ― Baerle, Caspar van. The History of Brazil under the Governorship of Count Johan Maurits of Nassau, 1636-1644. Translated with notes and an introduction by Blanche T. van Berckel-Ebeling Koning. Gainesvilie 2011. ― Baro, Rodolfo. Relação da viagem de Roulox (sic) Baro, intérprete e embaixador ordinário da Companhia das Índias Ocidentais, (...) ao país dos Tapuias na terra firme do Brasil (...). Traduzida do holandês para o francês por Pierre Moreau. Tradução e notas de Lêda Boechat Rodrigues. São Paulo 1979. — Teensma, B. N. O diário de Rodolfo Baro (1647) como monumento aos índios Tarairiú do Rio Grande do Norte. In: Índios do Nordeste: temas e problemas, 2. Maceió, EDUFAL, 2000: 81-99. — Santos Júnior, Valdeci dos. Os índios Tapuias do Rio Grande. Antepassados esquecidos. Mossoró 2008. — Ibold, Frank; Jens Jäger, Detlev Kraack, (editores). Das 'Memorial und Jurenal' des Peter Hansen, Hajstrup (1624 — 1672). = Quellen und Forschungen zur Geschichte Schleswig-Holsteins, Band 13. Neumünster 1995.
  5. Carvalho, Alfredo de. Minas de ouro e prata no Brasil oriental. Explora- ções hollandezas no século XVII. In: Idem. Aventuras e aventureiros no Brasil. Rio de Janeiro 1929: 109-128. — Krommen, Rita. Mathias Beck und die Westindischen Kompagnie. Zur Herrschaft der Niederländer im kolonia- len Ceará. Arbeitspapiere zur Lateinamerika Forschung der Universität Köln, 11-01, 2001. — Xavier, L. F. W. Mathias Beck and the quest for silver. Dutch adaptability to Brazil. (Tese de mestrado não publicada defendida em janeiro de 2007 na Erasmus Universiteit, Rotterdam, Países Baixos.) — Teensma, B. N. As frustrações do pastor Jodocus. Uma malo- grada empresa mineira dos holandeses no sertão paraibano. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, ano 99, no. 40. João Pes- soa 2007: 115-141.
  6. "As minas de Camarajibe e Iporé." In: Olavo de Medeiros Filho. No rastro dos Flamengos. Natal 1989: 87-97.
  7. Os funcionários europeus da WIC no Brasil observaram e interpretaram os fenômenos naturais nordestinos segundo critérios europeus. Um quadrúpede sertanejo do tamanho de um coelho era para eles um rato, ou seja, RAT ou ROT, na língua holandesa arcaica. Um rato europeu nada em água, bebe água e deixa seus dejetos em água. Na Europa, as águas frequentadas por ratos são poluídas, empestadas e infectadas. Elas convertem-se em Rottenpiswater, ou seja, Água de Mijo de Ratos. No sertão, ao lado dos afluentes do rio Potengi, eles encontraram semelhantes águas empestadas, usando sua terminologia holandesa para elas. Na minha tradução portuguesas de tal termo exótico optei pelo nome tentativo de Água de Mijo de Mocós. Fique claro que tal tradução é aproximativa. Saiba-se de passo que o famoso naturalista Jorge Margrave na sua famosa História Natural do Brasil (São Paulo, 1942: pp. 223-224), já cita nomes como Veldratte e Boschratte para as espécies de pequenos roedores silvestres brasileiros.
  8. Este artigo foi escrito na estreita colaboração de dois especialismos que raramente se combinam numa só pessoa. Refiro-me à georreferenciação riograndense e à linguística luso-holandesa. Como a corrupteliatria é um especialismo linguístico ainda bastante descuidado, não quis perder neste artigo a oportunidade de chamar a devida atenção a ela.