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Livro 1 - Do descobrimento do Brasil - Capítulo 13 - De suas aldeias

De Atlas Digital da América Lusa

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A noite toda tem fogo para se aquentarem, porque dormem em redes no ar, e não têm cobertores, nem vestido, mas dormem nus marido e mulher na mesma rede, cada um com os pés para a cabeça do outro, exceto os principais, que como têm muitas mulheres dormem sós nas suas redes, e dali quando querem se vão deitar com a que lhes parece, sem se pejarem de que os vejam. Quando é hora de comer se ajuntam os do rancho, e se assentam em cócoras, mas o pai da família deitado na rede, e todos comem em um alguidar, ou cabaço, a que chamam cuia, que estas são as suas baixelas, e dos cabaços principalmente fazem muito cabedal, porque lhes servem de pratos para comer, de potes e de púcaros para água e vinho, e de colheres, e assim os guardam em uns caniços que fazem chamados jiraus, onde também curam ao fumo os seus legumes, porque se não corrompam, e sem terem caixas, nem fechaduras, e os ranchos sem portas, todos abertos, são tão fiéis uns aos outros, que não há quem tome ou bula em coisa alguma sem licença de seu dono.  
 
A noite toda tem fogo para se aquentarem, porque dormem em redes no ar, e não têm cobertores, nem vestido, mas dormem nus marido e mulher na mesma rede, cada um com os pés para a cabeça do outro, exceto os principais, que como têm muitas mulheres dormem sós nas suas redes, e dali quando querem se vão deitar com a que lhes parece, sem se pejarem de que os vejam. Quando é hora de comer se ajuntam os do rancho, e se assentam em cócoras, mas o pai da família deitado na rede, e todos comem em um alguidar, ou cabaço, a que chamam cuia, que estas são as suas baixelas, e dos cabaços principalmente fazem muito cabedal, porque lhes servem de pratos para comer, de potes e de púcaros para água e vinho, e de colheres, e assim os guardam em uns caniços que fazem chamados jiraus, onde também curam ao fumo os seus legumes, porque se não corrompam, e sem terem caixas, nem fechaduras, e os ranchos sem portas, todos abertos, são tão fiéis uns aos outros, que não há quem tome ou bula em coisa alguma sem licença de seu dono.  
 
Não moram mais em uma aldeia que em quanto lhes não apodrece a palma dos tetos das casas, que é espaço de três ou quatro anos, e então o mudam para outra parte, escolhendo primeiro o principal, com o parecer dos mais antigos, o sítio que seja alto, desabafado, com água perto, e terra a propósito para suas roças e sementeiras, que eles dizem ser a que não foi ainda cultivada, porque têm por menos trabalho cortar árvores que mondar erva, e se estas aldeias ficam fronteiras de seus contrários, e têm guerras, as cercam de pau-a-pique mui forte, e às vezes de duas e três cercas, todas com suas seteiras, e entre uma e outra cerca fazem fossos cobertos de erva, com muitos estrepes de baixo, e outras armadilhas de vigas mui pesadas, que em lhes tocando caem, e derribam a quantos acham.
 
Não moram mais em uma aldeia que em quanto lhes não apodrece a palma dos tetos das casas, que é espaço de três ou quatro anos, e então o mudam para outra parte, escolhendo primeiro o principal, com o parecer dos mais antigos, o sítio que seja alto, desabafado, com água perto, e terra a propósito para suas roças e sementeiras, que eles dizem ser a que não foi ainda cultivada, porque têm por menos trabalho cortar árvores que mondar erva, e se estas aldeias ficam fronteiras de seus contrários, e têm guerras, as cercam de pau-a-pique mui forte, e às vezes de duas e três cercas, todas com suas seteiras, e entre uma e outra cerca fazem fossos cobertos de erva, com muitos estrepes de baixo, e outras armadilhas de vigas mui pesadas, que em lhes tocando caem, e derribam a quantos acham.
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Edição atual tal como 08h40min de 9 de janeiro de 2013

Há uma casta de gentios Tapuias chamados por particular nome Aimorés, os quais não fazem casas onde morem, mas onde quer que lhes anoitece, debaixo das árvores limpam um terreiro, no qual esfregando uma cana ou flecha com outra acendem lume, e o cobrem com bom couro de veado, posto sobre quatro forquilhas, e ali se deitam todos a dormir com os pés para o fogo, dando-lhes pouco, como os tenham enxutos e quentes, que lhes chova em todo o corpo. Porém as mais castas de índios vivem em aldeias, que fazem cobertas de palma, e de tal maneira arrumadas, que lhes fique no meio um terreiro, onde façam seus bailes e festas, e se ajuntem de noite a conselho. As casas são tão compridas que moram em cada uma 70, ou 80 casais, e não há nelas algum repartimento mais, que os tirantes, e entre um e outro é um rancho, onde se agasalha um casal com sua família, e o do principal da casa é o primeiro no copiar, ao qual convida primeiro qualquer dos outros, quando vem de caçar, ou de pescar, partindo com ele daquilo que traz, e logo vai também repartindo pelos mais, sem lhe ficar mais que quanto então jante, ou ceie, por mais grande que fosse a cambada do pescado, ou da caça. E quando algum vem de longe, as velhas daquela casa o vão visitar, ao seu rancho com grande pranto, não todas juntamente, mas uma depois de outra, no qual pranto lhe dizem as saudades que tiveram, e trabalhos que padeceram em sua ausência, e ele também chora dando uns urros de quando em quando sem exprimir coisa alguma, e o pranto acabado lhe perguntam se veio, e ele responde que sim, e então lhe trazem de comer, o que também fazem aos portugueses, que vão às suas aldeias, principalmente se lhes entendem a língua, maldizendo no choro a pouca ventura que seus avós e os mais antepassados tiveram, que não alcançaram gente tão valorosa como são os portugueses, que são senhores de todas as coisas boas, que trazem a terra de que eles dantes careciam, e agora as tem em tanta abundância, como são machados, foices, anzóis, facas, tesouras, espelhos, pentes e roupas, porque antigamente roçavam os matos com cunhas de pedra, e gastavam muitos dias em cortar uma árvore, pescavam com uns espinhos, faziam o cabelo e as unhas com pedras agudas, e quando se queriam enfeitar faziam de um alguidar de água espelho, e que desta maneira viviam mui trabalhados, porém agora fazem suas lavouras, e todas as mais coisas com muito descanso, pelo que os devem de ter em muita estima; e este recebimento é tão usado entre eles, que nunca ou de maravilha deixam de fazer, senão quando reinam alguma malícia ou traição contra aqueles, que vão às suas aldeias a visitá-los, ou resgatar com eles. A noite toda tem fogo para se aquentarem, porque dormem em redes no ar, e não têm cobertores, nem vestido, mas dormem nus marido e mulher na mesma rede, cada um com os pés para a cabeça do outro, exceto os principais, que como têm muitas mulheres dormem sós nas suas redes, e dali quando querem se vão deitar com a que lhes parece, sem se pejarem de que os vejam. Quando é hora de comer se ajuntam os do rancho, e se assentam em cócoras, mas o pai da família deitado na rede, e todos comem em um alguidar, ou cabaço, a que chamam cuia, que estas são as suas baixelas, e dos cabaços principalmente fazem muito cabedal, porque lhes servem de pratos para comer, de potes e de púcaros para água e vinho, e de colheres, e assim os guardam em uns caniços que fazem chamados jiraus, onde também curam ao fumo os seus legumes, porque se não corrompam, e sem terem caixas, nem fechaduras, e os ranchos sem portas, todos abertos, são tão fiéis uns aos outros, que não há quem tome ou bula em coisa alguma sem licença de seu dono. Não moram mais em uma aldeia que em quanto lhes não apodrece a palma dos tetos das casas, que é espaço de três ou quatro anos, e então o mudam para outra parte, escolhendo primeiro o principal, com o parecer dos mais antigos, o sítio que seja alto, desabafado, com água perto, e terra a propósito para suas roças e sementeiras, que eles dizem ser a que não foi ainda cultivada, porque têm por menos trabalho cortar árvores que mondar erva, e se estas aldeias ficam fronteiras de seus contrários, e têm guerras, as cercam de pau-a-pique mui forte, e às vezes de duas e três cercas, todas com suas seteiras, e entre uma e outra cerca fazem fossos cobertos de erva, com muitos estrepes de baixo, e outras armadilhas de vigas mui pesadas, que em lhes tocando caem, e derribam a quantos acham.


Ficha técnica da Fonte
Autor: Frei Vicente do Salvador
Data: 1627.
Referência: .
Acervo: .
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