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Livro 1 - Do descobrimento do Brasil - Capítulo 14 - Dos seus casamentos e criação dos filhos

De Atlas Digital da América Lusa

Edição feita às 08h40min de 9 de janeiro de 2013 por Tiagogil (disc | contribs)

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Não é fácil averiguar, mormente entre os principais, que têm muitas mulheres, qual seja a verdadeira, e legítima, porque nenhum contrato exprimem, e facilmente deixam umas e tomam outras, mas conjetura-se que é aquela de que primeiro se namoram, e por cujo amor serviram aos sogros, pescando-lhes, caçando, roçando o mato para a sementeira, e trazendo-lhes a lenha para o fogo. Mas o sogro não entrega a moça até lhe não vir seu costume, e então é ela obrigada a trazer atado pela cintura um fio de algodão, e em cada um dos buchos dos braços, outro, para que venha à notícia de todos, e depois que é deflorada pelo marido, ou por qualquer outro, quebra em sinal disso os fios, parecendo-lhe que se o encobrir a levará o diabo, e o marido de qualquer maneira a recebe, e consumando o matrimônio, se tem que esta é a legítima mulher, ou quando assim não estão casados, a cunhada, mulher que foi do irmão defunto, ainda que lhe ficasse filho dele, ou a sobrinha / filha, não do irmão, que esta tem eles em conta de filha própria, e não casam com ela, senão da irmã, / e com qualquer destas com que primeiro se casaram, ou seja, a sobrinha ou a cunhada, os casam depois sacramentalmente os religiosos que os curam, no mesmo dia em que batizam dispensando nos impedimentos, por privilégio que para isto tem, e lhes tiram todas as outras, casando-as com outros, não sem sentimento dos primeiros maridos; porque de ordinário se ficam com as mais velhas. A mulher em acabando de parir se vai lavar ao rio, e o marido se deita na rede, mui coberto, que não dê o vento, onde está em dieta, até que se seque o umbigo ao filho, e ali o vem os amigos a visitar como a doente, nem há poder lhes tirar esta superstição, porque dizem que com isto se preservam de muitas enfermidades a si, e à criança, a qual também deitam em outra rede com seu fogo debaixo, quer seja inverno, quer verão, e se é macho logo lhe põem na azelha da rede um arquinho com suas flechas; e se fêmea uma roca com algodão. As mães dão de mamar aos filhos sete ou oito anos, se tantos estão sem tornar a parir, e todo este tempo os trazem ao colo ora elas, ora os maridos, principalmente quando vão às suas roças, onde vão todos os dias depois de almoçarem, e não comem enquanto andam no trabalho, senão à véspera, depois que voltam para casa. Os maridos na roça derrubam o mato, queimam-no, e dão a terra limpa às mulheres, e elas plantam, mondam a erva, colhem o fruto e o carregam, e levam para casa em uns cofos mui grandes feitos de palma, lançados sobre as costas, que pode ser suficiente carga de uma azêmola, e os maridos levam um lenho aos ombros, e na mão seu arco e flechas, que fazem com as pontas de dentes de tubarões, ou de umas canas agudas, a que chamam taquaras, de que são grandes tiradores; porque logo ensinam aos filhos de pequenos a tirar ao alvo, e poucas vezes tiram a um passarinho, que não o acertem, por pequeno que seja . Também os ensinam a fazer balaios, e outras coisas de mecânica, para as quais têm grande habilidade, se eles a querem aprender, que se não querem não os constrangem, nem os castigam por erros, e crimes que cometam, por mais enormes que sejam. As mães ensinam as filhas a fiar algodão e fazer redes de fio, e nastros para os cabelos, dos quais se prezam muito, e os penteiam, e untam de azeite de coco bravo, para que se façam compridos, grossos, e negros. Nas festas se tingem todas de jenipapo, de modo que se não é no cabelo parecem negras de Guiné, e da mesma tinta pintam os maridos, e lhes arrancam o cabelo da barba, se acerta de lhe nascer algum, e o das sobrancelhas e pestanas, com que eles se tem por mui galantes, junto com terem os beiços de baixo furados, e alguns as faces, e uns tornos, ou batoques de pedras verdes metidos pelos buracos, com que parecem uns demônios. Pois hei tratado neste capítulo do contrato matrimonial deste gentio: tratarei também dos mais contratos, e não serei por isso prolixo ao leitor, porque os livros que hão escrito os doutores de contractibus, sem os poderem de todo resolver pelos muitos, que de novo inventa cada dia a cobiça humana, não tocam a este gentio; o qual só usa de uma simples comutação de uma coisa por outra, sem tratarem do excesso, ou defeito do valor, e assim com um pintainho se hão por pagos de uma galinha. Nem jamais usam de pesos e medidas, nem têm números por onde contem mais que até cinco, e se a conta houver de passar daí a fazem pelos dedos das mãos e pés, o que lhes nasce da sua pouca cobiça; posto que com isso está serem mui apetitosos de qualquer coisa que vem, mas tanto que a tem, a tornam facilmente de graça, ou por pouco mais de nada.


Ficha técnica da Fonte
Autor: Frei Vicente do Salvador
Data: 1627.
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