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Livro 4 - DA HISTORIA DO BRASIL DO TEMPO QUE O GOVERNOU Manuel Teles Barreto ATÉ A VINDA DO GOVERNADOR Gaspar de Souza - Capítulo 43 - Da segunda jornada, que fez Pero Coelho de Souza à serra de Boapaba, e ruim sucesso que teve

De Atlas Digital da América Lusa

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Dali marcharam para as salinas muitos dias, e estando nelas viram passar o barco, em que iam os padres da companhia, que era o socorro que o governador lhes mandava, mas não lhe puderam falar, mas caminhando avante da salina, morreu o filho mais velho do capitão, que era o lume de seus olhos, e de sua mãe; o que cada qual deles fez neste passo deixo à consideração dos que lerem; aqui eram já os soldados do parecer das crianças, dizendo que até ali bastava, e sem dúvida o fizeram, se a mulher do capitão, esforçando-se para os animar, lhe não pedira que quisessem caminhar, pois também as crianças, o que eles começavam a fazer por seus rogos, mas estavam tão fracos que o vento os derribava, e assim se iam deitando pela praia até que o capitão, que se havia adiantado cinco ou seis léguas com dois soldados mais valentes a buscar água, tornou com dois cabaços dela, com que os refrigerou para poderem andar mais um pouco, donde viram pela praia vir uns vultos de pessoas, e era o padre vigário do Rio Grande, o qual pelo que lhe disseram os soldados fugidos os vinha esperar com muitos índios, e redes para os levarem, muita água e mantimentos, e um crucifixo na mão, que em chegando deu a beijar ao capitão, e aos mais, o que fizeram com muita devoção, e alegria, com muitas lágrimas, não derramando menos o vigário, vendo aquele espetáculo, que não pareciam mais que caveiras sobre ossos, como se soube pintar a morte, e com muita caridade os levou, e teve no Rio Grande, até que se foram para a [[Paraíba]], donde [[Pero Coelho de Souza]] se foi ao reino requerer seus serviços, e depois de gastar na Corte de Madri alguns anos sem haver despacho, se veio viver em Lisboa, sem tornar mais à sua casa.
 
Dali marcharam para as salinas muitos dias, e estando nelas viram passar o barco, em que iam os padres da companhia, que era o socorro que o governador lhes mandava, mas não lhe puderam falar, mas caminhando avante da salina, morreu o filho mais velho do capitão, que era o lume de seus olhos, e de sua mãe; o que cada qual deles fez neste passo deixo à consideração dos que lerem; aqui eram já os soldados do parecer das crianças, dizendo que até ali bastava, e sem dúvida o fizeram, se a mulher do capitão, esforçando-se para os animar, lhe não pedira que quisessem caminhar, pois também as crianças, o que eles começavam a fazer por seus rogos, mas estavam tão fracos que o vento os derribava, e assim se iam deitando pela praia até que o capitão, que se havia adiantado cinco ou seis léguas com dois soldados mais valentes a buscar água, tornou com dois cabaços dela, com que os refrigerou para poderem andar mais um pouco, donde viram pela praia vir uns vultos de pessoas, e era o padre vigário do Rio Grande, o qual pelo que lhe disseram os soldados fugidos os vinha esperar com muitos índios, e redes para os levarem, muita água e mantimentos, e um crucifixo na mão, que em chegando deu a beijar ao capitão, e aos mais, o que fizeram com muita devoção, e alegria, com muitas lágrimas, não derramando menos o vigário, vendo aquele espetáculo, que não pareciam mais que caveiras sobre ossos, como se soube pintar a morte, e com muita caridade os levou, e teve no Rio Grande, até que se foram para a [[Paraíba]], donde [[Pero Coelho de Souza]] se foi ao reino requerer seus serviços, e depois de gastar na Corte de Madri alguns anos sem haver despacho, se veio viver em Lisboa, sem tornar mais à sua casa.
  
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Edição atual tal como 08h58min de 9 de janeiro de 2013

O capitão Pero Coelho de Souza, de quem tratamos em o capítulo trinta e sete, se partiu com mulher e filhos em uma caravela, e foi desembarcar em Ceará, onde havia deixado o capitão Simão Nunes com os soldados, que ali estiveram ano e meio, em um forte de taipa, que fizeram aguardando o socorro do governador, o qual como não chegasse, e houvesse já muita falta de roupas, e mantimentos, requereram os soldados que se retirassem ao rio de Jaguaribe, donde, por ser mais perto de povoado, poderiam ir pedir o socorro, o que porventura fizeram, para de lá lhe ficar mais perto, e fácil a fugida, que fizeram, porque logo Simão Nunes pediu licença ao capitão-mor para passar da outra banda do rio a comer fruta, e como lá se viram não se curaram de colher fruta senão de se acolherem, o que visto pelo capitão, e que lhe não ficavam mais que 18 soldados mancos, e por isso não foram com os outros, e dos índios só um chamado Gonçalo, porque também os mais fugiram, determinou tornar-se para sua casa, e com este, e com alguns soldados menos mancos ordenou uma jangada de raízes de mangues, em que poucos e poucos passaram todos o rio, e como o tiveram passado, mandou marchar cinco filhos diante, dos quais o mais velho não passava de 18 anos, logo os soldados, e detrás ele e sua mulher, todos a pé, logo nesta primeira jornada a sentir o trabalho, porque, tanto que a calma começou a cair, não havia quem pudesse pôr o pé na areia de quente, começava já o choro das crianças, os gemidos da mulher, e lástima dos soldados, e o capitão fazendo seu ofício, animando, e dando coragem a todos. No segundo dia já o capitão carregava dois filhos pequenos às costas por não poderem andar, e começavam as queixas de sede, que se não remediou senão ao terceiro dia por noite em uma cacimba, ou. poço de água doce junto de outras duas salgadas, mas não havendo mais espaço dentre elas que de duas braças; ali se detiveram dois dias, e encheu o índio Gonçalo dois cabaços de água, com que se partiram, e caminharam algum tempo, com muito trabalho, e risco de Tapuias inimigos, que por ali andam, e lhes viam os fumos; mas o pior inimigo era a fome e sede, com que começaram a morrer os soldados; o primeiro foi um carpinteiro, com o qual os que já não podiam andar disseram ao capitão que os deixasse ficar, que com morrer acabariam seus trabalhos, como acabava aquele, mas o capitão os animou, dizendo que fossem por diante, que Deus lhe daria forças para chegar aonde houvesse água, e de comer, com isto se levantaram, e caminharam até morrer outro, ali se pôs d. Tomázia, mulher do capitão, a dizer tantas lástimas, que parece se lhe desfazia o coração, vendo que tinha todos seus filhos ao redor de si, e pegando dela do menor, até o maior, diziam que até ali bastavam caminhar que também queriam morrer com aquele homem, porque já não podiam sofrer tanta sede, e ela derramando de seus dois olhos dois rios de lágrimas, que bem puderam matar-lhe a sede, se não foram salgadas, disse ao marido fosse e salvasse a vida, porque ela não queria já outra senão morrer em companhia de seus filhos, os soldados uns rebentaram a chorar, outros a pedir-lhe que quisesse caminhar; o capitão dissimulando a dor o mais que pôde, disse que dali a pouco espaço estava uma cacimba de água, e com esta esperança tornaram a caminhar para a água amargosa, que assim se chamava aquela cacimba pelo amargor da água, pelo que chegando a ela não houve quem a bebesse, e foram caminhando para outra, que chamam a boa maré, passando meia légua de mangues com lodo até a cinta, onde acharam uns caranguejos chamados oratus, e como até ali se não sustentavam senão em raízes de árvores; e de ervas, pegando dos caranguejos os comiam crus, com tanto gosto como se fora algum guisado muito saboroso, e muito mais depois que chegaram à cacimba de água, onde descansaram alguns dias. Dali marcharam para as salinas muitos dias, e estando nelas viram passar o barco, em que iam os padres da companhia, que era o socorro que o governador lhes mandava, mas não lhe puderam falar, mas caminhando avante da salina, morreu o filho mais velho do capitão, que era o lume de seus olhos, e de sua mãe; o que cada qual deles fez neste passo deixo à consideração dos que lerem; aqui eram já os soldados do parecer das crianças, dizendo que até ali bastava, e sem dúvida o fizeram, se a mulher do capitão, esforçando-se para os animar, lhe não pedira que quisessem caminhar, pois também as crianças, o que eles começavam a fazer por seus rogos, mas estavam tão fracos que o vento os derribava, e assim se iam deitando pela praia até que o capitão, que se havia adiantado cinco ou seis léguas com dois soldados mais valentes a buscar água, tornou com dois cabaços dela, com que os refrigerou para poderem andar mais um pouco, donde viram pela praia vir uns vultos de pessoas, e era o padre vigário do Rio Grande, o qual pelo que lhe disseram os soldados fugidos os vinha esperar com muitos índios, e redes para os levarem, muita água e mantimentos, e um crucifixo na mão, que em chegando deu a beijar ao capitão, e aos mais, o que fizeram com muita devoção, e alegria, com muitas lágrimas, não derramando menos o vigário, vendo aquele espetáculo, que não pareciam mais que caveiras sobre ossos, como se soube pintar a morte, e com muita caridade os levou, e teve no Rio Grande, até que se foram para a Paraíba, donde Pero Coelho de Souza se foi ao reino requerer seus serviços, e depois de gastar na Corte de Madri alguns anos sem haver despacho, se veio viver em Lisboa, sem tornar mais à sua casa.


Ficha técnica da Fonte
Autor: Frei Vicente do Salvador
Data: 1627.
Referência: .
Acervo: .
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