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Livro 4 - DA HISTORIA DO BRASIL DO TEMPO QUE O GOVERNOU Manuel Teles Barreto ATÉ A VINDA DO GOVERNADOR Gaspar de Souza - Capítulo 7 - De como se tentaram as pazes com o Braço de Peixe, e por as não querer se lhe deu guerra

De Atlas Digital da América Lusa

Ao outro dia pela manhã cedo logo os índios se puseram às pulhas / como é seu costume / em um teso alto defronte da nossa cerca, além de um grande alagadiço, que por aquela parte ficava, donde foram conhecidos dos nossos ser gente do Braço de Peixe, que não eram Potiguares, senão Tabajaras seus contrários; mas por se temerem dos portugueses, que vingassem a morte de cento e tantos, que com Gaspar Dias de Ataíde, e Francisco de Caldas / ainda que com razão / haviam mortos / como dissemos no capítulo vigésimo do livro precedente/, se vieram a meter com os Potiguares, e assim por se reconciliarem com eles, como por serem mais industriosos, e valentes, nos faziam muito dano; o que entendido pelo general Martim Leitão, e considerando de quanta importância seria ter paz com eles, e apartá-los dos Potiguares, mandou por línguas fazer-lhe práticas, que estivessem seguros que só buscavam os Potiguares, com os quais nunca queríamos paz, mas com eles sim, dizendo-lhes mais que o general era homem do reino, fora de malícias e enganos, que com eles usavam os do Brasil, e estava muito bem informado da sua amizade antiga com os brancos, pelos quais sabia que quebrava a paz, e que se os capitães Ataíde e Caldas foram vivos os mandara el-rei castigar; com estas práticas, e vinho que lhes deram a beber, concertaram que dando reféns mandaria o Braço seus embaixadores depois de jantar assentar pazes com o general, o qual neste meio tempo trabalhou com toda a dissimulação em mandar descobrir o alagadiço, se por cima ou por baixo daria vau à gente; mas não se achou nisto remédio, pela grandeza do alagadiço, e espessura do mato à roda. Ao meio-dia vieram três índios a tratar das pazes, que foram ouvidos na tenda do general, e examinados por línguas, e feitas todas as diligências, e ostentações que foram necessárias, por o Braço e os seus terem consigo muitos Potiguares, juntamente com o medo de suas culpas, nada bastou para os segurar, e assim tornando-se à tarde quiseram lá matar os reféns, e ficou a guerra rota, que os inimigos estimando pouco esquentaram toda aquela tarde, com trinta e tantas espingardas, e muitas flechas que tiraram. Ao que ainda querendo atalhar o general, para os desenganar mandou sair por sua ordem todas as companhias, e gente por uma campina entre a cerca, e o lago, que naquela manhã, para o que sucedesse, tinha mandado roçar; também lhe mandou dar mostra de dois berços, que trazia em carros, e varejar com eles uma caiçara, ou tranqueira, que para pelejarem, e se defenderem no cume de um pico, no cabo de uma queimada, os inimigos haviam feito, e com outros assombros, nada bastou para quererem paz: com isto se resolveu o general a lhes darem ao outro dia batalha, mandando aquela tarde fazer muitos feixes de faxina, que ao longo da cerca haviam cortado, para que com as pontes, que o gentio no alagadiço havia feito, passagem da outra banda. Não foi nada aprazível ao arraial esta determinação do general, que se viu melhor no Conselho, que na sua tenda se teve aquela noite, que foi assaz vário, e confuso, e a seus brados se assentou ficassem ali as duas partes do arraial, e Francisco Barreto com eles, com todo o provimento, para o que sucedesse, e ele a pé com a terça parte ir dar nos inimigos no pico. Ouvindo missa ao outro dia pela manhã muito cedo, partiu o general com as companhias da vanguarda somente, e o guião de cavalo de Antônio Cavalcante, que mandou no roçado, e em uma queimada andar da nossa parte do alagadiço, para por ali não rebentar alguma cilada, e lhe tomarem as costas, e levando o padre Jerônimo Machado, da companhia, um crucifixo diante, acharam no alagadiço muito estorvo por de noite os inimigos cortarem muitas árvores, com que o atravessaram, e embaraçaram todo: com isto, e com andarem muitos soldados pela queimada da outra banda às flechadas, e arcabuzadas, se passava devagar, e com tanto receio, que foi necessário ao general agastar-se com alguns, e mandando ficar a companhia de Ambrósio Fernandes com ordem que se não bulisse do alagadiço até todos serem em cima, arrancou da espada jurando havia de escalar o primeiro que falasse, senão obrarem todos como esforçados; isto, e meter-se com o passo apressado após os dianteiros, fez passar os mais, e tornar a ladeira acima bem depressa. Depois de se recolherem os inimigos na cerca, subiam os nossos em pés e mãos por ela, e ferrando-a todos não acabavam de a render, o que vendo o general tomou um inglês, que levava consigo armado, e subindo às costas em cima da cerca com uma formosa lança de fogo fez tais floreios, lançando dela infinidade de foguetes, que despejaram os inimigos. Por ali, e derribando os nossos duas ou três braças de cerca, que cortaram, entraram dentro, e os foram seguindo um pedaço, ainda que, com o ruim caminho, e impedimentos que os inimigos tinham postos, e eles serem bichos do mato, que foram por onde querem, foi causa de escaparem muitos. O que ordenou Deus para nos ficarem, como agora os temos, por amigos. Corridos assim, o mais que os nossos puderam, mandou o general queimar toda a caiçara, e madeira da cerca, e assolado tudo se tornou para seus companheiros, que haviam ficado na outra cerca, os quais o vieram receber fora com Te-Deum Laudamus, e no mesmo dia a tarde houve um rebate da banda do Tibiri a que alguns capitães acudiram desordenadamente, e por ser a revolta grande mandou o general a Francisco Barreto os fosse recolher, o que fez muito bem, e com muita ordem; porque na escaramuça que se travou foram mortos alguns Potiguares, sem dos nossos haver ferido algum, e por não ser já de efeito a estada ali, ao outro dia mandou o general pôr fogo à cerca, e com todo o exército pelo rio Tibiri abaixo foi seguindo os inimigos, e foram dormir dali a duas léguas, onde agora se chama as marés, e arrancados todos os mantimentos, que acharam, que foi a maior guerra que se lhes pôde fazer, e queimadas duas aldeias, que ali estavam despovoadas, se tornaram acima a buscar outra cerca nova, que havia feito um principal, chamado Assento de Pássaro, aonde, antes de chegarem, acharam tantos embaraços de ruim caminho, que se ia abrindo pelo mato, e brejos, e alguns inimigos corredores, que se atravessaram diante, que por mais que o general se apressou, passando-se á vanguarda com o ouvidor da capitania Francisco do Amaral, que sempre o seguia, e marchando com ela, já acharam a cerca, que era grande, e forte, despejada, ainda que em alguns velhos e fêmeas se vingou o nosso gentio; e ali pararam aquele dia, e o outro, donde pelos muitos alagadiços, e diversidade de opiniões dos caminhos, que ninguém sabia, se resolveram tornar pelo rio da Paraíba abaixo, buscar o passo para o forte, onde se assentaria o que cumprisse. Partidos desta cerca por outro caminho, que era a estrada, acharam nela tantos labirintos, que os inimigos tinham feitos, tantos fojos, árvores cortadas atravessadas, que era admiração, e a não haver grande cautela, poucos bastaram ali para desbaratar a muitos; mas de tudo Nosso Senhor os guardou e desviou. Passado embaixo o rio da Paraíba, em três dias chegaram ao forte, que estava coisa piedosa de ver, assim o danificamento, e ruinez dele, como as pessoas dos soldados, que bem mostravam as fomes, e misérias, que tinham passado.


Ficha técnica da Fonte
Autor: Frei Vicente do Salvador
Data: 1627.
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