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PARECER DO FREI MANOEL D MARVÃO, COMISSÁRIO PROVINCIAL DA PROVÍNCIA DA PIEDADE E MEMBRO DA JUNTA DAS MISSÕES

De Atlas Digital da América Lusa

PARECER DO FREI MANOEL D MARVÃO, COMISSÁRIO PROVINCIAL DA PROVÍNCIA DA PIEDADE E MEMBRO DA JUNTA DAS MISSÕES

Geometria

Autos da Devassa contra os Índios Mura


Senhor. Em 3 de outubro deste presente ano de 1738, se me entregou por via do reverendo deputado de Santo Antônio uma devassa com uma carta escrita ao mesmo pelo secretário de Estado cujo teor é o seguinte = Remeto a Vossa Reverendíssima a devassa inclusa para que a vista do seu acrescentamento possa fazer de tudo o seu parecer; e Vossa Reverendíssima se sirva depois do referido mandá-la ao Reverendíssimo deputado que se segue para que assim vão fazendo giro pelas mais; advertindo que já esta vista pela Companhia, Deus guarde a Vossa Reverendíssima muitos anos. Palácio dois de outubro de 1738 Reverendíssimo Padre Comissário de Santo Antônio José Gonçalves . E como a dita devassa se me entregou sem os votos, ou pareceres da Companhia, e Santo Antônio tenho para mim se devem remeter a Vossa Majestade em carta fechada em observância da carta de 1734 em que Vossa Majestade assim determinou, cujo expediente será eternamente louvado, como resolução de um monarca tão zeloso da inteireza e retidão da justiça, que por todos os meios pretende que os seus ministros votem e julguem sem o mínimo receio de coação, o qual deve temer neste Maranhão qualquer ministro ainda o da mais pura e reta consciência máxima em matéria de guerras de tapuias, cuja escravidão e cativeiro se faz tão apetitoso que apenas haverá pessoa secular, eclesiástica e ainda regular, que não se apeteça, e talvez excogitando meios para a conseguirem, que parecendo lícitos a primeira face, na realidade são ilícitos, e totalmente opostos as leis divinas e humanas, pelas quais cortam muitas vezes aqueles mesmos ministros que as deviam com mais obrigação fazer observar atendendo não só ao ofício que tem, mas também ao estado que professão. Proverá Deus, Senhor que ainda nos tempos dourados do Real Império de Vossa Majestade se mandasse riscar do nome de tapuias o nome de escravos, e que tão somente se baixassem dos sertões para filhos de Deus, serviço de Vossa Majestade, e utilidade dos moradores, sem o cruel jugo da escravidão, e o torpe lucro das compras e vendas, que esta é a causa motiva de tantas amarrações, e cativeiro injustos: os quais vão crescendo de sorte, que cada ano se amarram milhares, e milhares sem que entre tanto número de criminosos se veja um só publicamente castigado para escarmento dos mais, que talvez, se houvesse um castigo público cessariam os insultos que os brancos fazem continuamente nos sertões, e poderia ser se não houvessem também as queixas que motivaram a presente devassa, para cuja deliberação, e parecer não tenho mais que o limitado prazo de vinte e quatro horas, sendo que farei por descobrir segundo a direito alguns reparos tanto no corpo de delito, como na prova dele, sobre os quais os ministros de Vossa Majestade espero que façam uma grande reflexão, e não me cansarei em alegar textos de direito, pois sei que os ditos ministros trazem sempre diante dos olhos o direito canônico, civil e municipal do Reino, e sem mais digressões, são os seguintes. Reparo primeiro que servindo do corpo de delito para a presente devassa uma certidão do reverendo padre vice provincial da Companhia em que representam as hostilidades, e crimes cometidos pelos índios da nação Mura, habitadores do rio da Madeira, seja o mesmo denunciante o que vote, e ainda em primeiro lugar, na mesma guerra que pretende por meio da sua denúncia, sendo nela parte ofendida, lesa e danificadora pelos ditos criminosos denunciados; o que se comprova dos depoimentos das testemunhas, as quais asseveram todas que os crimes referidos na denúncia se cometeram nas canoas dos Tapajós e Murtigura, missões ambas dos padres da Companhia, cujas canoas não consta fossem enviadas pelos missionários das ditas aldeias à redução do gentilismo do tal rio, mas sim a colheita do cacau, e mais drogas do dito sertão, e segundo a direito ninguém pode votar em causa em que tiver dano ou interesse. E só então seria admitido o voto do reverendo padre vice provincial da Companhia , e eu de boa mente conviria na guerra dos índios Muras se provasse que estes impediam as entradas dos missionários à pregação dos santos evangelhos como estes os devem fazer todos os anos com cabos e escoltas de soldados para a sua defesa, que tudo Vossa Majestade lhes manda dar pelo governador do Estado como consta do Regimento das Missões folha 58, facilmente se poderia provar o crime dos ditos índios, o qual segundo as leis de Vossa Majestade era digno de se lhe dar guerra ofensiva, sendo que nada disto consta dos depoimentos das testemunhas, e só sim que se ofenderam as canoas da Companhia que iam a extrair as drogas do sertão. Reparo segundo que na presente devassa não haja uma só testemunha que presenciasse as hostilidades referidas depondo acerca delas só de ouvido, sem que refiram as testemunhas de vista, sendo certo que nas canos de Tapajós e Murtigura a quem se fizeram as hostilidades ditas não iam menos de vinte e cinco índios em cada uma delas, e todos das mesmas aldeias de que eram as canoas, pois deviam ser os remeiros que Vossa Majestade concede aos missionários, e estes por presenciarem as hostilidades por mandado dos seus principais, condição necessária para ser lícita a guerra ofensiva que deles se pretende. E o que se faz mais digno de reparo, é a certeza com que todas as testemunhas depõem que se não deu causa alguma aos índios Muras para fazerem os excessos referidos, e outro sim, que os moradores deste Estado se intimidam de ir ao rio da madeira a extrair as drogas do sertão, o que só fazem pelas beiras do dito rio: sendo de certo que todos os anos vão mais de cem, e de cento e cinquenta canoas ao dito rio Madeira, pois indo todos os anos ao sertão duzentas, e as vezes trezentas canoas umas delas vão sempre ao dito rio, e outras ao rio dos Solimões segundo as safra dos frutos que nos ditos rios se produz, em forma tal, que se o rio dos Solimões não é abundante de cacau, nesse ano vão todas as canoas ao rio da Madeira como sucedeu este ano. Sendo também certo, como me contou certo cabo de canoas que indo ao dito rio vendo que nas praias dele andavam um Magote do dito gentio buscando de comer que é o que vem buscar as praias, com três espingardas lhe deram uma carga de que matara bastantes, sem que os ditos índios lhe fizessem mais dano de que não quiseram vir a canoa buscar facas, pratos e outras coisas que lhe mostraram; e também sei que no tempo de Alexandre de Souza, governador deste Estado, lhe fizeram uns fulanos dano e outras insolências inauditas matando a espingarda os que lhe fugiam e amarrando todos os mais que puderem alcançar cujos eu vi andar vendendo de roça em roça como se fossem cabritos, e isto é hoje cotidiano com todos os mais tapuias; e quem me diz a mim que com estas, e outras insolências não estariam os índios Muras justamente ofendidos, e se quereriam vingar nas canoas da Companhia, quando estas não fossem os próprios agressores. Sendo também certo público, e notório que todos os anos se amarram injustamente nos sertões milhares e milhares de gentio, e se vem vender a esta cidade e contornos dela contra as leis divinas, humanas e decretos especiais de Vossa Majestade, em cujas amarrações é sabido que os brancos matam muitos índios, e há doze anos e esta parte que eu assisto nesta cidade, e não me consta que os índios matem aos brancos, pois apenas de conta de um ou dois por mais insolentes, ou mais aparentados de cujas mortes se faz logo um grande mistério para delas se dar guerra aos tapuias que é o que todos apetecem neste Estado, e sem duvida que muito mais guerras haveria desde o ano de 1734 até o presente como dantes havia se Vossa Majestade não tomara o expediente de ordenar se não desse guerra alguma ofensiva sem se lhe remeterem os votos dos ministros da Junta em carta fechada; com cujo expediente sempre digno de memória se atalharam as ditas guerras, e como famintos delas as pretendem agora por meio do reverendo padre vice provincial da Companhia talvez temendo que o governador do Estado lhe atalhe os cativeiros injustos na mesma forma em que o fez o governador João da Maya da Gama, pois desde que acabou o seu governo é até o presente se desaforaram os moradores do Estado, ou os [[[cabos de suas canoas]], não só para amarrarem os índios do sertão para virem vender, mas também para levaram por força , e contra as leis de Vossa Majestade, os índios das aldeias já cristãos, sem perdoarem aos pescadores, sacristãos e cozinheiros dos missionários assaltando muitas vezes de noite as residências dos padres, assaltando as mulheres para lhe dizerem aonde estão os maridos, embebedando as,e levando também algumas, e finalmente basta dizer que até do serviço de Vossa Majestade os levem que a tanto tem chegado a ambição da gente desta terra excitando também a que os mesmos principais e vassalos já de Vossa Majestade vendam os índios das aldeias católicas descidos pelos missionários para o grêmio da Igreja, e outros inexplicáveis insultos que não refiro por que isto basta para o intento; e como aos miseráveis tapuias se fazem tão notórias violências, que muito é que estes em defesa própria façam alguma, e talvez que essa seria a causa e motivo porque os índios Muras fizessem as hostilidades que deles se dizem sobre o que se deve fazer uma grande reflexão. Reparo terceiro que as testemunhas que depuseram na presente devassa convém a saber Lazaro Fernandez Plácido Tavares, Agostinho Domingues, João Monteiro, Felipe Delgado, e outros mais não foram ainda nenhuma só vez ao sertão, e depõem com tanta certeza das hostilidades cometidas pelos Muras, e ainda que digam serem notórios os ditos crimes não dizem o ouvirem a pessoa alguma que os presenciasse há vista de tais depoimentos ainda há de haver ministro que vote se faça guerra ofensiva aos índios Mura, que ainda justificando-se, e provando-se legalmente os motivos da dita guerra (...) me causaria escrúpulo o votar nela a favor da dita guerra, por ter experiência que condenada uma nação de gentio se faz guerra a outras muitas nações, como sucedeu no governo de Alexandre de Souza Freire com o gentio do rio Negro de cujos excessos cometidos da dita guerra dei eu conta, e mais alguns deputados a Vossa Real Majestade de que resultou mandar Vossa Majestade não só dar por nulas as escravidões que da tal guerra se tinham. /Seguindo/ ainda que sem efeito algum não obstante vir cá um sindicante; mas também ordenou Vossa Majestade se não sentenciasse mais neste Maranhão guerra alguma, e que fossem fechados os votos dela, como agora vão a presença de Vossa Majestade. Reparo quarto, e último, que se mande votar na guerra que se pretende nesta devassa sem se ouvirem os réus por seu curador que se lhe devia dar segundo a direito, e segundo a direito é nula a sentença que se proferir sem serem ouvidas as partes ; além de que se não acha na presente devassa fundamento ou condição alguma daquelas que o direito, e os autor pontão como regras gerais para ser lícita, e justa uma guerra ofensiva, cujas provas de facto devem ser tão claras como a luz do meio dia, o que nada se acha na presente devassa uz consideranti potebit. Termos em que julgo, salvo meliori juditio se não deve fazer guerra ofensiva aos índios Muras, e sendo certas as hostilidades que eles fazem das causas que lhe deram , e dariam, sou de parecer se lhes faça uma contra guerra em defesa das canoas que vão ao dito rio; sendo que como as guerras defensivas se não querem admitir neste Maranhão pela despesa que com elas faz a fazenda real, pois já no ano de 1733 requereu esta mesma guerra defensiva o vice provincial da Companhia José Vidigal, a respeito dos mesmos índios Muras, e se lhe não quis admitir pelo sobredito motivo gastos da fazenda Real; que talvez por esta causa pretenda agora o seu sucessor se lhe de guerra ofensiva, pois não tem maiores motivos que o seu antecessor tinha para a requerer defensiva. Sou de parecer que para se evitar os gastos da fazenda Real vão uma tropa de resgates ao rio da Madeira com gente para defesa dela, e com missionários, não só da Companhia cuja regalia pretendem ob-rogar para si, não sei se com bons fundamentos, mas também vão a dita tropa, e nas mais que houver outros missionários das outras religiões para verem se podem reduzir os índios do dito rio para que se baixem para as aldeias de Vossa Majestade com os pactos que se lhe fizerem, os quais se lhes devem observar inviolavelmente segundo as leis de Vossa Majestade e dos efeitos que se seguirem da dita tropa de resgates se colhera com evidência se há motivo justo para se fazer guerra ofensiva aos índios Muras, ou aquelas que impedirem assim a pregação do evangelho, como o comércio dos vassalos de Vossa Majestade que Deus guarde muitos, e muitos anos. O mesmo parecer dou sobre a guerra que se pretende fazer também aos índios do rio Tocantins, sem mais outro motivo, que o depoimento de um leigo que diz ser frade de São Bento, ainda que o não mostra cujo depoimento se acrescentou à presente devassa, e sobre ele se determinou por carta do secretário de Estado se desse também parecer, e quanto a mim me parece apócrifo tudo quanto depõem o chamado frade de São Bento pois é certo que não vindo nunca ao Pará logo soube entender as línguas dos índios do Tocantins, e distinguir as nações nomeadas pelos seus nomes de Tembéassu, Tembemeri etc. Além de que bem mostra o dito frade que é valente, e os índios muito fracos, pois nove homens em duas canoetas se souberam defender desde pela manhã até noite de trinta, e seis canoas de gentio, e de tanta quantidade deles em terra; e também é digno de admiração depois de tão cruel batalha a grande piedade que tiveram os índios com o dito padre pois lhe desalagaram a canoa, e o puseram em terra sem moléstia alguma. Quanto mais /quid quid sit do sobredito depoimento/ que no ano de 1734 foi a Vossa Majestade servido mandar recolher uma tropa de guerra que a dito rio Tocantins tinha mandado o governador que então era José da Serra que Deus haja em glória: ainda que sou de parecer que se houver de facilitar o caminho para as Minas de São Félix se deve mandar uma tropa que desimpeça o dito caminho, pois os índios que assistem pelos seus sertões me consta serem alguns índios de corso, e de má condição: sendo que não obstante o sobredito Vossa Majestade ordenará o que for servido. Hospício de São José da Cidade do Grão-Pará cinco de outubro de 1738. Frei Manoel de Marvão Comissário Provincial da Província da Piedade



Ficha técnica da Fonte
Data: 1738.
Referência: INFORMAR REFERÊNCIA.
Acervo: INFORMAR ACERVO.
Transcrição: Manoel Rendeiro.
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