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Santidade de Jaguaripe

De Atlas Digital da América Lusa

Edição feita às 16h51min de 16 de setembro de 2016 por Tiagogil (disc | contribs)

Santidade de Jaguaripe

Geometria
por Tiago Gil


Movimento sincrético com elementos da cultura tupinambá, africana e católica ocorrido no recôncavo da Baía de Todos os Santos em finais do século XVI e inícios do século XVII. Acabou se instalando no Engenho de Fernão Cabral de Ataíde (em Jaguaripe), onde foi cultuado durante algum tempo até ser objeto de perseguição por parte da Inquisição, em 1591. Segundo Schwartz, "bolsões de resistência continuaram até o final dos anos 1620".[1]. A santidade foi estudada por diversos autores, tais como Laura de Mello e Souza [2], Ronaldo Vainfas [3] e Stuart Schwartz [4]

Abaixo, a descrição feita por Domingos Fernandes Nobre, o Tomacauna, que participou ativamente do movimento:

Aspa1.png Confessou que haverá cinco ou seis anos pouco mais ou menos que, no sertão desta cidade, se alevantou entre os gentios uma erronia e abusão a que eles chamavam Santidade, e tinham um gentio a que chamavam papa, o qual dizia ser Deus, e a outros chamavam santos, e uma gentia chamavam mãe de Deus, e a outras chamavam santas, e faziam entre si batismos com candeias acesas, lançando água pelas cabeças dos batizados, e punham-lhes nomes a seu modo, os quais batismos fazia o dito chamado papa, autor e inventor da dita erronia e abusão, o qual se chamava Antônio e era do gentio deste Brasil, e se criou em casa dos padres da Companhia de Jesus no tempo que eles tinham aldeias em Tinharé, capitania dos Ilhéus, donde ele fugiu para o sertão. E ordenou a dita erronia, arremedando e contrafazendo os usos da Igreja cristã, fazendo os ditos batismos e fazendo igrejas com altares e pias de água benta, e mesas de confrarias e tocheiros, e contas de rezar, e sacristia, e tinham no altar um ídolo de uma figura de animal que nem demonstrava ser homem, nem pássaro, nem peixe, nem bicho, mas era como quimera, no qual adoravam, e a dita negra chamada mãe de Deus era mulher do dito papa ao seu uso gentílico. E sendo assim levantada esta abusão, foi ele confessante, por mandado do governador Manuel Teles Barreto, por capitão de uma companhia de soldados que consigo levou para desfazer a dita erronia e prender ,e trazer os sus- tentadores dela, dos quais muitos e a mor parte deles eram cristãos que, depois de serem cristãos, fugiram para o dito chamado papa, que também eta cristão. E indo ele confessante já pelo sertão dentro, achou que os sustentadores da dita abusão fugiam por sentirem que iam contra eles, e topou com uma manga de negros do gentio deste Brasil, deles gentios e deles cristãos, os quais traziam consigo o dito ídolo, e vendo ele confessante o dito ídolo, lhe tirou o chapéu e o reverenciou fingida- mente, por enganar aos que o traziam, dando-lhes a entender que cria naquela sua abusão. E pedindo-lhe os ditos negros que os deixasse fazer uma procissão com o dito ídolo, ele confessante lhes deu licença para isso, e mandou aos seus negros que consigo levava que os ajudassem a fazer a dita procissão, e com eles fez ele seus sagrados e tangeu seus instrumentos gentílicos ao seu uso daquela sua abusão chamada Santidade. E então mandou ele confessante a alguns de seus companheiros com o dito ídolo que o levassem a Fernão Cabral de Taíde, à sua fazenda de Jaguaripe, donde ele con- fessante tinha partido para o dito sertão, os quais companheiros eram Domingos Camacho, natural do Algarve, que ora está nas índias deTocumão,188 e Pantaleão Ribeiro, lavrador e morador na fazenda de Diogo Correa, pelos quais, com o dito ídolo, escreveu uma carta ao dito Fernão Cabral em que lhe dizia que lhe mandava ali aquele ídolo com aquela gente seguidora da dita abusão, que poderiam ser algumas sessenta almas, que lhes fizesse boa companhia enquanto ele confessante ia por diante ao sertão, por que não corresse ele perigo no sertão. E que depois de assim despedir aos ditos seus companheiros que levaram a dita sua gente e ídolo, ele confessante foi por diante, levando já consigo novo socorro de companheiros que lhe mandou o governador Manuel Teles. E chegando a um passo onde chamam Palmeiras Compridas, lhe mandou dizer o principal dos sustentadores daquela erronia, o qual chamavam papa, que ele não passasse daquele lugar sob pena de obediência, porque ele viria logo aí ter, e logo o dito chamado papa veio vestido com uns calções de raxa preta e uma roupeta verde e um barrete vermelho na cabeça, trazendo consigo muitos dos seus sequazes em fileiras de três, em ordem, e as fêmeas e crianças todas detrás com as mãos levantadas. E o dito chamado papa, que vinha na dianteira, e os mais que o seguiam em fileiras, vinham fazendo meneios e movimentos com os pés e a mão e pescoço, e falando certa linguagem nova, que tudo era invenção e cerimônia daquela abusão chamada Santidade. E ele, confessante, adorou ao dito chamado papa e se ajoelhou diante dele dizendo estas palavras, “adoro-te bode porque hás de ser odre”. E logo ele confessante fez também o pranto ao dito chamado papa, segundo o costume gentílico, e saltou e festejou com ele ao seu modo gentílico, e bebeu o fumo com ele, ao qual fumo os seguidores da dita abusão chamavam sagrado, e tangeu e cantou com eles seus instrumentos e suas cantigas em suas linguagens, e consentiu que adorassem a ele confessante, e lhe chamassem filho de Deus e lhe chamassem também são Luís. E que todas estas coisas fez e consentiu sem a intenção nem ânimo de gentio, mas fingidamente, para enganar aquela gente daquela erronia e a trazer consigo, como trouxe, para a dita fazenda do dito Fernão Cabral. E ao dito chamado papa deu ele confessante uma espada de cavalgar, e dantes já lhe tinha mandado um traçado e o dito vestido com que ele vinha vestido. Aspa2.png
Primeiras Visitações da Bahia, 1591. Testemunho de Domingos Fernandes Nobre [ABREU, Capistrano. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões da Bahia, 1591/1592. Rio de Janeiro: F. Briguet, 1935.]


Referências

  1. SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. São Paulo: Companhia das Letra, 2011.
  2. SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo E a Terra De Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1999
  3. VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995
  4. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. Engenhos E Escravos Na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999



Citação deste verbete
Autor do verbete: Tiago Gil
Como citar: GIL, Tiago. "Santidade de Jaguaripe". In: BiblioAtlas - Biblioteca de Referências do Atlas Digital da América Lusa. Disponível em: http://lhs.unb.br/atlas/Santidade_de_Jaguaripe. Data de acesso: 29 de março de 2024.



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