Para que serve um banco de dados? Um exemplo da Bahia no século XVI

De Cliomatica - Digital History
Tempo estimado de leitura deste artigo 19 minutos - por Carlos Antonio Pereira de Carvalho


A pesquisa teve como objetivo analisar a mobilidade de escravizados na Bahia do século XVI, mais especificamente no Recôncavo baiano e no ano de 1592. A hipótese levantada para o estudo em questão era a possibilidade de escravizados terem "livre" – parcial ou total – mobilidade pelo território baiano, conquistada através da inserção destes em redes sociais que possibilitavam que a circulação espacial fosse feita com uma maior "liberdade". Notoriamente, essa hipótese não surgiu em vão. Em um estudo feito pela pesquisadora Dayane Silva constatou-se que havia uma circularidade de informações pelo Recôncavo Baiano onde os escravizados estariam inseridos por meio da confiança atribuída à informações que eram interpeladas por estes escravizados. Em outras palavras, a voz dos escravizados era tida como digna de confiança quando o assunto era o repasse de informações. O termo "circularidade de informações" remete justamente à presença de escravizados como denunciantes, interpeladores da denúncia ou confessantes nos testemunhos de confissão e denuncia, que tinham como objetivo, expor as heresias que ocorriam na Bahia da época ao Santo Ofício. Quanta informação, não? Apesar do resumo grosseiro, por ora, deixarei você leitor com essas informações. Elas serão essenciais para desmembrarmos a pesquisa e para estudarmos minuciosamente cada parte constituinte deste estudo a começar pela nossa fonte. [1]

A fonte que utilizamos para fundamentar nossa pesquisa foi elaborada a partir da Visitação do Santo Ofício da Inquisição à cidade da Bahia (hoje conhecida como Salvador) no século XVI. Ocorreram duas visitações desta instituição à referida cidade, uma em 1590 e outra em 1620. O Objetivo dessas visitas era recolher testemunhos e confissões de atos que fossem considerados heréticos contra a moral cristã da época entre os ocupantes, autóctones e os trazidos forçosamente para àquele território. É notório que esse processo inquisitório era pertencente ao universo do europeu cristão, todavia, a especificidade da ideologia não impediu que seus julgamentos fossem também aplicados ao universo dos indígenas e negros escravizados, e até mesmo do europeu colonizador que – naquele momento – podia ser diferenciado pelos novos ares do território além-mar português. [2]


Com o objetivo de recolher tais denúncias e confissões heréticas, o Santo Ofício da Inquisição produziu registros de informações para cada visita realizada. Cada volume desse contou com centenas de relatos de agentes que se dividiam entre confessores e delatores. Dito isto, se faz necessário expressar a configuração que estes documentos mantinham. A primeira vista, essas fontes foram separadas em dois grupos: confissões e denunciações. Essa remete ao relato do agente que tinha como objetivo confessar-se perante o Santo Ofício, e esta, por sua vez, tratava dos relatos dos agentes que queriam denunciar um terceiro ao Santo Ofício. Em regra, cada relato segue um padrão de escrita do documento. Em outras palavras, podemos dizer que há, majoritariamente, uma forma característica para essa fonte.

Geralmente, cada fonte inicia com um texto pré-determinado, indicando se o relato tratava-se de uma confissão ou de uma denúncia. No cabeçalho do texto, quando confissão, o texto inicia-se com "Confissão de fulano" e, quando denúncia, "Contra ciclano". Seguindo esta ideia, logo após a identificação do autor, eram registrados qualitativos que podiam ser extraídos dos agentes em questão e por fim a data do registro. Normalmente, esses qualitativos diziam à respeito da qualidade de cristão em que o agente se encaixava. A maior variação que se encontrou para a cidade da Bahia naquela época era a de cristão velho ou novo que, respectivamente, referia-se ao cristão praticante da fé de longa data e ao recém convertido.[3] Para além do qualitativo, preocupava-se também com o registro do local de naturalidade do autor do testemunho, assim como seu local atual de moradia e outros dados, tais como, profissão, conhecimento sobre quem eram os pais do comunicante e também a sua situação matrimonial. Majoritariamente, pode-se contar com esses registros nos documentos pertencentes à Santa Inquisição. Há, entretanto, variações tanto na ordem como na presença de determinados dados, o que – para todos os efeitos – não implicou no comprometimento da análise feita, já que estávamos lidando com a serialidade de dados comuns.

Após o apontamento destes dados havia o testemunho dos agentes. Em que podia se tratar tanto de uma confissão própria que poderia envolver ou não outros agentes, assim como se referir a uma denuncia que, neste caso, sempre envolviam um ou mais agentes além do próprio denunciante. Nessa parte, não há uma uniformização dos dados ou do testemunho. Notoriamente podemos compreender que estes não seguiam uma regra e sempre variavam em forma, texto e tamanho. Todavia, de acordo com a sua característica, sempre pode-se contar com o nome e o local de moradia dos agentes envolvidos.


Dito isto, chamo a atenção do leitor para a repetição de determinados dados. Como já dito, podemos sempre contar com o nome e local de moradia dos agentes. Tendo como fixas essas informações, o que poderíamos fazer com tantos dados para a nossa pesquisa em História? Aqui entra o primeiro passo para se olhar analiticamente para essas informações: a constituição de um Banco de dados. Mas, afinal, para que serve um Banco de Dados?

A apresentação da fonte para você leitor não foi em vão. Se faz extremamente necessário conhecer bem os dados que estão sendo trabalhados para que então você saiba o que pode ser feito com eles. No nosso caso, apresentei a vocês o porquê da nossa fonte. Sua forma, suas informações, de onde vem e por qual razão foi constituída. Ter isso em mente é essencial para a construção de um banco de Dados. Se tiverem lido com atenção, irão se atentar que fiz questão de insistir na percepção da repetição de determinadas informações do nosso documento, pois elas serão o nosso guia de construção do nosso Banco de Dados.

Mas, voltando para a pergunta, para que serve um Banco de Dados? Em História, o banco de dados é um importante amigo do pesquisador que visa entender um estudo em questão, seja para avaliar quantitativamente um determinado objeto ou mesmo qualitativamente. Não se exclui outras possibilidades mas, geralmente, o banco de dados em História se encaixa perfeitamente para o manejo de informações serializadas nas fontes, ou ainda de fontes seriais em sua origem.[4] Em outras palavras podemos dizer que o Banco de dados serve para ajudar o pesquisador a organizar informações que podem atender a critérios tanto do pesquisador como os colocados pela fonte.[5]

No entanto, como se dá a confecção de um Banco de Dados?

Continua em A confecção de um banco de dados: um caso da Bahia do século XVI


Referências

  1. Pesquisadora responsável pelo termo utilizado. Para maior conhecimento e contextualização do texto, ver sua dissertação: SILVA, Dayane Augusta: Em tempos de visitas. Inquisição, circulação e oralidade na Bahia ( 1590 - 1620). http://repositorio.unb.br/handle/10482/17199.
  2. Dentro da Historiografia que discute o assunto, há a perspectiva de que os portugueses que viviam na dita América Portuguesa não compartilhavam ou se desvencilharam consideravelmente da moral cristã que se constituiu em Portugal. No livro, Diabo e a Terra de Santa Cruz de Laura de Mello e Souza essa ideia é melhor explicitada.
  3. Apesar dessas classificações parecerem simples em seu entendimento, o universo que as constitui não é tão simples assim. Para informações mais profundas acerca do que constrói um cristão velho ou um novo, verificar historiografia pertinente ao tema.
  4. A grosso modo, o significado de serialização ou serial em história advém de uma vertente que defende - teoricamente e metodologicamente - o uso de fontes seriais ou em séries para o estudo da História.
  5. Não entrarei no mérito da discussão teórica e filosófica acerca da empiria da fonte, ou mesmo se é possível que uma fonte possa definir para o pesquisador o critério que então deverá ser usado. Não é o enfoque do texto. Entretanto, se o leitor quiser se inteirar e tirar suas próprias conclusões sobre o assunto, verificar Historiografia pertinente ao proposto.



Citação deste verbete
Como citar: CARVALHO, Carlos Antonio Pereira de. "Para que serve um banco de dados? Um exemplo da Bahia no século XVI". In: CLIOMATICA - Portal de História Digital e Pesquisa. Disponível em: http://lhs.unb.br/cliomatica/index.php/Para_que_serve_um_banco_de_dados%3F_Um_exemplo_da_Bahia_no_s%C3%A9culo_XVI. Data de acesso: 8 de junho de 2024.






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