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Livro 3 - DA HISTÓRIA DO BRASIL DO TEMPO QUE O GOVERNOU Tomé de Souza ATÉ A VINDA DO GOVERNADOR Manuel Teles Barreto - Capítulo 25 - De uma entrada, que nesse tempo se fez de Pernambuco ao sertão

De Atlas Digital da América Lusa

(Diferença entre revisões)
(Criou página com 'Na era do Senhor de mil quinhentos setenta e oito, em que Lourenço da Veiga governava este estado, se ordenou em Pernambuco uma entrada para o sertão em que foi por ...')
 
 
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Não sei eu com que justiça e razão homens cristãos, que professavam guardá-la, quiseram aqui que pagasse o justo pelo pecador, trazendo cativo o gentio, que não lhes havia feito mal algum, e deixando em sua liberdade os rebeldes, e homicidas, que lhes haviam feito tanta guerra e traições. Porém eles lhes deram o pago, pois apenas os haviam deixado, quando determinaram de lhe ir no alcance, e mandaram adiante alguns por espias, que se metessem pelos matos, e quando os do Araconda fossem à caça lhes dissessem que eles remordidos de suas consciências os queriam redimir do cativeiro dos brancos em que os puseram, e para isto lhes queriam dar guerra, pelo que os avisavam que quando vissem a batalha os deixassem, e se fossem embora para suas terras, porque a gente do Porquinho era já despedida, e não tinham que temer; mas posto que isto se tratou com muito segredo, o ouviu uma índia das cativas, que o disse a seu senhor, e o senhor a outros, que não creram senão depois que o viram, e não lhes aproveitou o aviso, porque os inimigos lhes deram na retaguarda, e lhes mataram 11 homens, sem os da vanguarda lhes poderem valer, assim por irem mais longe, como pelo gentio de Araconda ser acolhido, e cuidar o capitão que nenhum da retaguarda lhes haveria escapado com vida; só mandou dois negros saber se eram mortos ou vivos, os quais vendo-os cercados e postos em tanto aperto, que quase estavam desmaiados, entraram apelidando a Santo Antônio, e um com arco e flecha, outro com seu terçado, e rodela, fazendo tanto estrago, que bastou este pequeno socorro para animar os amigos, e atemorizar os inimigos, de sorte que se puseram em fugida, e os pernambucanos não os podendo já seguir, se tornaram para suas casas, mais pobres do que vieram.  
 
Não sei eu com que justiça e razão homens cristãos, que professavam guardá-la, quiseram aqui que pagasse o justo pelo pecador, trazendo cativo o gentio, que não lhes havia feito mal algum, e deixando em sua liberdade os rebeldes, e homicidas, que lhes haviam feito tanta guerra e traições. Porém eles lhes deram o pago, pois apenas os haviam deixado, quando determinaram de lhe ir no alcance, e mandaram adiante alguns por espias, que se metessem pelos matos, e quando os do Araconda fossem à caça lhes dissessem que eles remordidos de suas consciências os queriam redimir do cativeiro dos brancos em que os puseram, e para isto lhes queriam dar guerra, pelo que os avisavam que quando vissem a batalha os deixassem, e se fossem embora para suas terras, porque a gente do Porquinho era já despedida, e não tinham que temer; mas posto que isto se tratou com muito segredo, o ouviu uma índia das cativas, que o disse a seu senhor, e o senhor a outros, que não creram senão depois que o viram, e não lhes aproveitou o aviso, porque os inimigos lhes deram na retaguarda, e lhes mataram 11 homens, sem os da vanguarda lhes poderem valer, assim por irem mais longe, como pelo gentio de Araconda ser acolhido, e cuidar o capitão que nenhum da retaguarda lhes haveria escapado com vida; só mandou dois negros saber se eram mortos ou vivos, os quais vendo-os cercados e postos em tanto aperto, que quase estavam desmaiados, entraram apelidando a Santo Antônio, e um com arco e flecha, outro com seu terçado, e rodela, fazendo tanto estrago, que bastou este pequeno socorro para animar os amigos, e atemorizar os inimigos, de sorte que se puseram em fugida, e os pernambucanos não os podendo já seguir, se tornaram para suas casas, mais pobres do que vieram.  
 
Tinha o governador d. [[Lourenço da Veiga]] uma coisa, e era que, por mais negócios, que tivesse, não deixava de ouvir missa, e para não obrigar alguém a que o acompanhasse, ia e vinha sempre a cavalo.
 
Tinha o governador d. [[Lourenço da Veiga]] uma coisa, e era que, por mais negócios, que tivesse, não deixava de ouvir missa, e para não obrigar alguém a que o acompanhasse, ia e vinha sempre a cavalo.
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Edição atual tal como 08h50min de 9 de janeiro de 2013

Na era do Senhor de mil quinhentos setenta e oito, em que Lourenço da Veiga governava este estado, se ordenou em Pernambuco uma entrada para o sertão em que foi por capitão Francisco Barbosa da Silva em um caravelão até ao rio de S. Francisco, e por ser a gente muita, e não caber na embarcação, foram setenta homens por terra, levando por seu cabo a Diogo de Castro, que falava bem a língua da terra, e havia já ido da Bahia a outras entradas. Estes havendo passado o rio Formoso foram cometidos de um bando de porcos monteses, com tanta fúria, e rugido de dentes, que os pôs em pavor, mas como tinham as espingardas carregadas, descarregaram-nas neles, e os fizeram voltar ficando sete mortos, que foram bons para a matulagem. Daí a nove dias, chegando à lagoa viram estar uma nau francesa, surta três léguas ao mar, para o rio de S. Miguel, da qual se haviam desembarcado 10 franceses, e estavam em uma tranqueira contratando com alguns gentios. Deram os nossos sobre eles de madrugada quando dormiam, mataram nove, ficando só um defendendo-se tão valorosamente com uma alabarda, que com estar já com uma perna cortada, ainda antes que o matassem matou um soldado nosso chamado Pedro da Costa. Os índios, que com eles estavam, eram poucos, e dizendo-lhes Diogo de Castro, que os não buscavam, senão aos franceses, se foram sem fazer alguma resistência, e os nossos seguiram seu caminho até o desembarcadouro do rio de S. Francisco, onde foi aportar o caravelão com o seu capitão, e os mais, que levava; e dali, por não terem índios, que lhes carregassem os mantimentos, e resgates, os mandaram pedir ao principal chamado Porquinho, e a outro seu contrário chamado o Seta, para que se um os não desse, os desse o outro, e eles foram tão obedientes, que de ambas as partes vieram; e assim para os contentar se foi o capitão com os do Seta, e Diogo de Castro com os do Porquinho. O Seta, depois de ter o capitão em casa, lhe cometeu que lhe queria vender uma aldeia de contrários, que tinha dali a nove ou 10 léguas, que fosse com ele, e lha. entregaria; aceitou o capitão o partido, e deixando em guarda do fato um Diogo Martins Leão com 12 homens, se foi com os mais onde o Seta os levava. Dos que ficaram com o Leão foram cinco pelas aldeias vizinhas a buscar de comer, porque os gentios delas se publicavam amigos, mas eles os mataram sem lhes haverem dado para isso ocasião alguma, e logo se foram à casa onde Diogo Martins Leão havia ficado com os mais para os matarem todos, e lhes tomarem os resgates, os quais entendendo a determinação com que iam carregaram à pressa as espingardas, e começaram a se defender valorosamente. Logo escreveu Diogo Martins uma carta a Diogo de Castro, que o socorresse, e lha mandou por um cigano, a qual vista, e o perigo, e aperto em que ficavam, deu cópia dela ao Porquinho, que logo se pôs a pregar que sempre fora amigo dos brancos, e o havia de ser até a morte, pois eles lhes levavam as ferramentas com que faziam suas roças, e sementeiras, e outras coisas boas de que eram senhores; que se fizessem prestes para os irem socorrer, porque ele se punha já ao caminho, como de feito se pôs, e dentro de 24 horas se achou junto aos cercados com 1.500 índios, em companhia de Diogo de Castro, e de mais oito homens brancos, os quais, repartidos todos em duas mangas, feito o sinal com uma corneta, deram subitamente no inimigo com tanto ímpeto que não lhes puderam resistir, e se puseram em fugida; mas como os tinham cercados com as mangas, iam lhes dar nas mãos, e foram mortos mais de 600; era isto antemanhã, e como amanheceu depois de se saudarem, e renderem as graças os que ficaram livres do cerco, lhes perguntou se sabia o capitão daquela rebelião do gentio, e por lhe dizerem que não, lhe escreveu dois escritos do que havia passado, e que logo se tornasse com boa ordem, e vigilância até se juntarem com ele, que também o ia buscar, porque entre tantos inimigos não convinha andarem espalhados: um destes escritos levava um mamaluco, que não chegou, porque os inimigos o mataram no caminho; o outro levou um índio que chegou, o qual visto pelo capitão dissimulou o temor, e alvoroço, que com ele recebeu e disse ao Seta e aos mais, que os acompanhavam, que era necessário tornar atrás a socorrer os brancos, que o Porquinho tinha posto em cerco, e com isto fez volta até um rio, que distava dali quatro léguas, onde os rebeldes o estavam já aguardando em cilada, e rebentando dela se travou entre todos uma briga, que durou até a noite, e tornando pela manhã a continuá-la, chegaram Diogo de Castro, e o Porquinho, com cujo socorro se animou mais o capitão, e combatendo-os uns por detrás, outros por diante, mataram mais de 500. Ali tomaram conselho, e assentaram que os acabassem de uma vez, e fossem a uma cerca forte, e grande, onde se haviam acolhido, dali a 12 léguas, no alto de uma serra.

Começaram a marchar, e no segundo dia chegaram a um rio, que manava de um penedo, onde acharam morto, e com os braços cortados, e as pernas, o mamaluco, que haviam mandado com

o escrito ao capitão. Dali mandaram um branco com dois negros por espias, que se encontraram com outros dois dos inimigos; um mataram, e trouxeram o outro vivo, do qual souberam que a cerca distava dali duas léguas, e que estavam nela 43 principais nomeados com toda a sua gente, mulheres e filhos.


Chegados os nossos à vista, não a quiseram os brancos dar de si senão só os do Porquinho, que já a este tempo eram vindos das suas aldeias mais de dois mil, os quais vistos pelos da cerca saíram a eles outros tantos, e fingindo os do Porquinho, depois de haverem bem batalhado, que lhes fugiam, se foram retirando até os afastar um bom espaço da cerca, e então saiu o nosso capitão com os brancos, dando-lhe sua surriada de pelouros pelas costas, e voltaram os da retirada com outra de flechas, onde tomando-os em meio trezentos, e os mais sem poderem tornar à cerca, se acolheram para os matos. A cerca tinha três mil e 236 braças em circuito, e lançava um braço até a água de que bebiam; esta lhe determinaram os nossos tomar primeiro, e posto que os de dentro a defenderam com muito esforço seis dias, contudo no sétimo foi rendida, com o que começaram a morrer de sede, e a cometer muitos partidos, e o último foi que entregariam uma aldeia de seus contrários se os brancos fossem com eles a tomar a entre a como foram, e entrando na aldeia começaram a pregar que eles os tinham vendido por serem seus inimigos, e ainda lhe faziam muita mercê em não os matarem nem os venderem a outros gentios, que os matassem ou maltratassem, senão a cristãos, que os haviam tratar cristãmente; ao que respondeu o principal da aldeia, chamado Araconda, que eles eram os que mereciam o cativeiro, e a morte, por serem matadores de brancos, e não ele nem os seus, que nunca lhes fizeram nenhum dano; e então se virou para o capitão, e lhe disse: «Branco, eu nunca fiz mal a teus parentes, nem estes me podem vender; mas eu por minha vontade quero ser cativo, e ir contigo.» O capitão lhe agradeceu com palavras, e mandou que se aprestassem dentro de quinze dias para o caminho, como fizeram; eram tantos, que indo todos em fileira um atrás de outro como costumam /, ocupavam uma légua de terra. Não sei eu com que justiça e razão homens cristãos, que professavam guardá-la, quiseram aqui que pagasse o justo pelo pecador, trazendo cativo o gentio, que não lhes havia feito mal algum, e deixando em sua liberdade os rebeldes, e homicidas, que lhes haviam feito tanta guerra e traições. Porém eles lhes deram o pago, pois apenas os haviam deixado, quando determinaram de lhe ir no alcance, e mandaram adiante alguns por espias, que se metessem pelos matos, e quando os do Araconda fossem à caça lhes dissessem que eles remordidos de suas consciências os queriam redimir do cativeiro dos brancos em que os puseram, e para isto lhes queriam dar guerra, pelo que os avisavam que quando vissem a batalha os deixassem, e se fossem embora para suas terras, porque a gente do Porquinho era já despedida, e não tinham que temer; mas posto que isto se tratou com muito segredo, o ouviu uma índia das cativas, que o disse a seu senhor, e o senhor a outros, que não creram senão depois que o viram, e não lhes aproveitou o aviso, porque os inimigos lhes deram na retaguarda, e lhes mataram 11 homens, sem os da vanguarda lhes poderem valer, assim por irem mais longe, como pelo gentio de Araconda ser acolhido, e cuidar o capitão que nenhum da retaguarda lhes haveria escapado com vida; só mandou dois negros saber se eram mortos ou vivos, os quais vendo-os cercados e postos em tanto aperto, que quase estavam desmaiados, entraram apelidando a Santo Antônio, e um com arco e flecha, outro com seu terçado, e rodela, fazendo tanto estrago, que bastou este pequeno socorro para animar os amigos, e atemorizar os inimigos, de sorte que se puseram em fugida, e os pernambucanos não os podendo já seguir, se tornaram para suas casas, mais pobres do que vieram. Tinha o governador d. Lourenço da Veiga uma coisa, e era que, por mais negócios, que tivesse, não deixava de ouvir missa, e para não obrigar alguém a que o acompanhasse, ia e vinha sempre a cavalo.


Ficha técnica da Fonte
Autor: Frei Vicente do Salvador
Data: 1627.
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