Bases centradas no método

De Cliomatica - Digital History


Tempo estimado de leitura deste artigo 15 minutos - por Tiago Gil


PORTAL DE BANCOS DE DADOS

Bancos de dados e sua potencial utilidade na pesquisa em história (texto que apresenta o quanto de teoria e metodologia há por trás das aparentes decisões técnicas de quem cria o banco de dados)

Bancos de dados: um breve histórico do seu uso por historiadores (verbete sobre diversos historiadores que usaram bancos de dados em suas pesquisas, demonstrando algumas dos problemas enfrentados por eles)

Estrutura de dados e Modelos conceituais, lógicos e físicos (Artigos de caráter técnico que apresentam o vocabulário básico de criação de bancos de dados)

Aspectos visuais (Algumas notas sobre como bases visualmente claras podem ser úteis, além de dicas sobre como criar bases visualmente boas)

Bases centradas na fonte (Texto sobre bases de dados criadas com base em uma fonte histórica, como Registros de Batismos, cartas ou Inventários Post-Mortem)

Bases centradas no método (Texto sobre bases de dados criadas com base em um método ou problema de pesquisa, como aquelas focadas em indivíduos, famílias, redes, etc)

Já vimos que o sistema "Fichoz" é um bom exemplo de base de dados method-centred, que, apesar de não permitir a incorporação integral de fontes, permitia o desdobramento de interações sociais (descritas nas fontes) em uma grande variedade de pedaços reagrupáveis conforme a necessidade. No caso da base "Fichoz", a possibilidade de desmontar as fontes é tão grande que, dependendo da obstinação do pesquisador, nem seria tão perigoso ficar sem elas. E seria relativamente fácil reutilizar a base, tendo em vista sua plasticidade diante de inúmeras metodologias conhecidas na atualidade. Como sou um defensor das bases source-centred, tenho receio de recomendar bases centradas no método, mas entendo que, quando bem feitos, esses bancos de dados são preciosos. Vejamos alguns exemplos de metodologias e como seria a criação de bases com essa perspectiva.


Prosopografia

Assim como é preciso conhecer a fonte para fazer uma base centrada nelas, é preciso conhecer bem a metodologia. Para a prosopografia, por exemplo, é fundamental conhecer o clássico de Lawrence Stone sobre a aristocracia inglesa, assim como seu artigo de 1971, que já apresentamos no início desta obra. Há outros livros importantes, inclusive muitas coletâneas nacionais, mas seria muito longo apresentar todas aqui. Isso é uma tarefa do “desenvolvedor” da base, que deverá tomar essas referências em conta. Sabemos que prosopografia é a biografia de um grupo, que pode ou não ser homogêneo, e que é preciso ter uma ferramenta com a qual possamos armazenar os dados de tal maneira que possamos utilizar a base circulando entre os indivíduos e o grupo. A prosopografia já previa uma variação de escala (pelo menos duas), muito antes de esse assunto entrar com força no debate historiográfico a partir da micro-história. Será o caso de termos duas bases, uma para o grupo e outra para os agentes? Devemos ter uma “ficha” para cada personagem, com sua data de nascimento, de casamento, de morte, etc.? Já vimos um modelo interessante para a prosopografia, a mesma base “Fichoz”, de Jean-Pierre Dedieu. Ela não tinha fichas individuais e sua concepção era totalmente oposta a esse sistema. A ideia, como já vimos, era de desmembrar a vida das pessoas em eventos, para que pudessem ser reagrupados depois em forma de uma biografia (numa busca pelo sujeito) ou por meio de algum outro critério. Com a mesma base, seria possível relacionar o acontecimento com outras pessoas, permitindo análises de redes. Isso foi possível porque, mesmo sem demandar inicialmente este tipo de análise, tal possibilidade foi pensada no início da construção da base. O modelo conceitual da base “Fichoz” me parece muito adequado aos estudos prosopográficos e seria difícil criar um sistema mais eficiente e flexível. Não é preciso ter uma cópia desse sistema para reproduzir seu conceito, basta conhecer sua descrição e aplicá-la com os devidos créditos. Um sistema de fichas individuais poderia ser uma boa saída, mas tem alguns limites difíceis de contornar. O primeiro é a montagem da história de vida da pessoa. Como desdobrá-la de modo cronológico? Mesmo que não nos agrade a cronologia, será que nunca precisaremos dela? Nunca teremos algum comportamento humano marcado pelo ciclo de vida, como idade para casar, idade para entrar no mundo do trabalho, idade para ser deputado etc.? Outro limite é que, para cada campo, precisaríamos de outro correlato para a fonte que usamos para preencher aquele campo. Por fim, deveríamos ter um campo “profissão” até para aqueles que nunca tiveram uma? Um campo de matrimônio mesmo para quem nunca se casou? É verdade que importa perceber as ausências, o que só seria possível sem um campo que exigisse isso de todos.


Análise demográfica (Método Henry)

Criado ao longo dos anos 1950 como um caminho para os estudos demográficos de épocas conhecidas como “pré-estatísticas”, quando não havia o registro sistemático de dados sobre as populações, o Método Henry formou gerações de pesquisadores e outras tantas escolas de estudos demográficos, de Cambridge ao Minho. A proposta era relativamente simples: se não dispomos de estatísticas oficiais para os séculos passados, juntemos todos os registros de batismo, casamento e óbito e tentemos reconstituir as famílias dessas épocas, através do cruzamento dos dados. Trabalho sem fim! E tudo isso usando fichas de papel. O tempo passou e somente em 1968 foi apresentado ao mundo o primeiro grande resultado da proposta, a tese de Pierre Goubert sobre Beauvais. Desde então, foram feitos muitíssimos acréscimos à concepção original, variações, inclusive, softwares variados para aplicar o famoso método. Para criar uma base de dados em que se utilize o Método Henry, o ideal seria começar com três bases de fontes: uma para os batismos, uma para os casamentos e outra para os óbitos. Adaptações posteriores do método, feito pelo próprio Henry para o caso do Brasil, permitiriam uma quarta base, para as listas nominativas. E isso não significa ignorar a opção de quem prefere trabalhar sem bases source-centred. A questão é que o próprio método prevê o tratamento diferenciado para cada fonte. O passo seguinte envolve unicamente abordagens method-centred. É preciso criar algumas tabelas e muitos campos para dar conta dessa metodologia. Parece-me adequado pensar em pelo menos três tabelas: localidade, família e indivíduo. Localidade, porque convém pensar que a base poderá ser utilizada para diferentes localidades, vizinhas, talvez, ou mesmo muito distantes (para estudar migração, por exemplo); família, por ser a unidade doméstica o centro do método. Indivíduo permitirá isolar os casos e informar suas datas de nascimento, casamento e morte. Da mesma forma, não podemos prever quantas pessoas formarão a família, o número de membros é, logo, sempre n. Se temos todos os dados organizados adequadamente nas bases de casamento, óbito e batismo, basta exportar todos os pares de pai e mãe, no caso dos batismos, e de noivos, nos casamentos. Feito isso, basta eliminar os duplicados e teremos todos os casais disponíveis naquela amostra. Convém fazer uma varreadura para encontrar problemas com nomes. Por exemplo, a Rita Maria de Oliveira, casada com Raimundo da Silva, pode ter sido incorretamente transcrita como Rosa Maria de Oliveira, por conta de um nome borrado. Um bom estudo da nossa lista resultante da exportação pode resultar em muitas correções necessárias. Como nossos dados estavam organizados e já foram corrigidos, basta relacionar nossa nova tabela com as bases de casamento e de batismo para que tragam informações complementares que formarão a ficha de cada uma das famílias. Esse é um procedimento bem menos trabalhoso do que digitar novamente todos os casos. É melhor gastar esse tempo revisando, o que deveria ser feito de qualquer jeito. Assim, já temos a tabela das famílias, formada por campos como “pai” e “mãe”, basicamente, além de campos que criem relacionamento com as localidades, com as famílias e com as fichas individuais. A tabela “localidades” terá os dados do conjunto que serão herdados por todas as famílias e todos os indivíduos. Assim, resta criar a tabela “indivíduos”, o que poderá ser feito a partir dos batismos, exportando separadamente todos os pais, mães, padrinhos e madrinhas, além da criança, claro. A exportação dos dados dos avós é ponto de reflexão, pois em comunidades jovens, recém-criadas, por exemplo, eles não costumam estar presentes. Mas pode ser relevante se assim for considerado pela equipe. Convém exportar esses dados junto com outros “estruturantes” da informação, como o nome do casal, a data, localidade e o código-fonte. No caso dos batizandos, convém exportar também a data de nascimento, se disponível, além da do batismo. Deste modo, cada indivíduo será associado a um casal, mas também a uma localidade, dadas as outras relações, como o compadrio. Para relacionar os óbitos, será preciso criar o relacionamento a partir do nome. Com esses procedimentos, teremos um sistema complexo de análise de famílias que permitirá vários outros cruzamentos, de tal maneira que possamos saber o intervalo intergenésico e, os compadrios, as famílias sem pai, entre uma multiplicidade de outros fenômenos sociais. Mas é preciso que fique claro que isso só será possível com boas bases de fontes que darão algum trabalho, mas valerão a pena. Feito isso, teremos condições de automatizar um bocado nosso esforço, de tal maneira que muito do que será necessário já estará feito. A automação e a criação de tabelas de família ajudarão a revisar o material previamente abastecido. Gasta-se tempo na preparação, mas, no momento da análise, os dados estarão disponíveis em poucos cliques.

Análise de redes sociais

Os estudos de análise de redes sociais surgiram entre os anos de 1950 e 1960, com o trabalho pioneiro de Elizabeth Bott, e as pesquisas de Mitchell, Boissevain e Barnes. É uma metodologia que enfatiza as interações humanas como objeto primordial de análise e destaca os tipos e as formas dos laços criados e mantidos por determinadas unidades de análise (que podem ser pessoas, empresas, cidades ou palavras) e como estas relações podem interferir no comportamento e nas escolhas dessas unidades. Talvez a maior justificativa para o uso dessa metodologia, além das questões epistemológicas atinentes, seja a possibilidade de visualizar matrizes e gráficos que destacam com clareza os vínculos entre as partes e observar aspectos não perceptíveis por outros caminhos. Cada matriz e seu gráfico correspondente apresentam um instantâneo dos vínculos de um grupo. O gráfico é formado por nós (que representam as unidades), linhas (que simbolizam as relações) e setas (que indicam os sentidos das ligações). De acordo com as informações sobre esses elementos, os desenhos e as cores do conjunto podem variar, indicando agrupações ou especificidades de certas unidades ou laços. Para a criação desses gráficos, existem softwares interessantes e práticos como o Gephi e o Ucinet. Preparar bases de dados para esse tipo de estudo demanda tabelas com as quais se possam destacar as relações entre as partes, ou seja, coletar dados sobre os personagens associados "em duplas" por tipo de relação. É certo que, muitas vezes, temos grupos que ultrapassam as duplas, mas eles devem ser desmontados aos pares, até que todos tenha relação com todos, pois, somente assim, será possível destacar esses vínculos dentro de uma matriz. No caso hipotético de um grupo de pessoas, temos um cenário onde quase todos se conhecem. Paulinho, por exemplo, conhece todos, mas a forma de representar isso nas análises de redes sociais requer que eu apresente os dados destacando com 1 ou 0 (1 = conhece; 0 = não conhece), quem é amigo de quem, ou seja, dupla por dupla. Vejamos um exemplo:

- João Pedro Maria
João 0 1 0
Pedro 1 0 1
Maria 0 1 0

Neste caso, zero ("0") significa ausência de vínculo e um ("1") significa vínculo, sem dizer que tipo é.

Graficamente, a relação seria assim:


João<----->Pedro<----->Maria


Para uma explicação mais clara, o leitor pode ler o artigo específico sobre como preparar seus materiais para criar as análises de redes sociais.

Assim, basta criar uma tabela em que se organizem os dados com essa estrutura e tudo ficará resolvido. No caso de registros de batismos, por exemplo, seria preciso decompor as relações de compadrio aos pares: pai com padrinho, pai com madrinha, mãe com padrinho, mãe com madrinha. Mas não basta só exportar os dados de uma base paroquial para um programa de análise de redes, porquanto as interações se repetem (um mesmo sujeito pode ser compadre de outro por várias vezes, por exemplo) e é preciso ter esse controle e certificar a qualidade dessas relações. Com isso, podemos colocar, ao invés de 1 ou 0, vários números, para indicar a repetição dos laços ou a qualidade deles - se de compadrio, de amizade, de vizinhança - etc. Quase todos os programas permitem apresentar isso visualmente.


Seriais

Um sistema para fontes seriais ou seriáveis já seria, por si só, source-centred, pois, na maioria das vezes quantificamos uma fonte única, só bens de inventários, por exemplo, ou apenas os registros de compra e venda de alguma localidade. Contudo, algumas bases não são feitas com uma fonte única. Não significa que sejam ruins. A base Slave Voyages, da Emory University é um bom exemplo. Ela foi feita com fontes muito variadas que mereceriam críticas muito diversas. Mas, fazendo isso, a base não ficaria pronta nunca e jamais teríamos ideia do volume de pessoas forçadas a cruzar o Atlântico. Em alguns casos - e isso vai depender do planejamento da equipe - pode ser preciso criar uma base serial que não esteja vinculada a uma única fonte primária, que seja um mosaico deformado, mas que nos apresente uma imagem, ao menos borrada do que queremos saber. Para esse tipo de abordagem, valem alguns aspectos que já pontuamos: planejamento, discussão, experiência com a base e testes. Isso pode garantir um bom desenvolvimento. Contudo, é preciso fazer como os coordenadores do Slave Voyages e como nos diria Marc Bloch: é preciso ter critério. Não há bom senso em História. Se definirmos bons critérios, nossa base terá coerência e será útil. Mas o problema não se resolve aí. Lembremos-nos do debate iniciado em 1965 com Adeline Daumart: nossas hipóteses mudam ao longo da pesquisa (e, muitas vezes, elas devem mudar), devido às próprias descobertas feitas ao longo dela. Essas são questões sobre as quais a equipe deverá refletir.


Referências




Citação deste verbete
Autor do verbete: Tiago Gil
Como citar: GIL, Tiago. "Bases centradas no método". In: CLIOMATICA - Portal de História Digital e Pesquisa. Disponível em: http://lhs.unb.br/cliomatica/index.php/Bases_centradas_no_m%C3%A9todo. Data de acesso: 8 de junho de 2024.






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